SEMPRE MILTON DIAS

José Milton de Vasconcelos Dias (*29-04 1919 - Ipu - CE; +22-03 1983 - Fortaleza - CE ).

Após iniciar os estudos na cidade de sua infância, Massapê, vem para o Colégio Castelo Branco em regime de internato.

A experiência da infância em meio à paisagem sertaneja, seus mitos e ritos, lendas e cantorias, foi fundamental para a formação de sua sensibilidade criadora, uma vez que despertaria, no futuro cronista, a inclinação para o lirismo, o poético.

No Colégio Marista Cearense, onde realizou os estudos secundários, descobriu, em definitivo, a vocação da escritura. Sendo fundador dos jornais ´O Ideal´; e ´Alvorada´.

Em Paris, cursou os Estudos Superiores Modernos de Língua Francesa e Literatura Francesa.

O Governo francês o condecorou com a Ordem das Palmas Acadêmicas.

Foi professor de Língua e Literatura Francesa no Curso de Letras da UFC.

Bacharel em direito (1943), Letras (1966), professor secundário no CE e SP, tradutor, diplomado em letras neolatinas. Cursou Faculdade de filosofia. Técnico educação UFCE, secretário UFCE, contista, cronista, ensaísta, orador, jornalista, fundador e membro do Grupo Clã-movimento renovador das letras cearenses. Membro da Academia Cearense de Letras- cadeira nº 4- e Associação Cearense da Imprensa.


sexta-feira, 23 de julho de 2010

Passeio com o escritor Milton Dias
Postado em 9 de julho de 2010 por pliniobortolotti, Jornal O Povo

O projeto Percursos Urbanos deste sábado (10/7/) será um passeio com o escritor Milton Dias.
O percurso buscará a Fortaleza do escritor Milton Dias (1919-1983).
Serão visitados lugares onde ele frequentava e será comentada a produção literária do autor de Entre a boca da noite e a madrugada.
A banca de revista onde Milton Dias comprava jornal ainda existe? E a fundação com seu nome, continua guardando sua imensa biblioteca e os objetos de sua residência?
O mediador do passeio será Silas Falcão, escritor e integrante da Associação Cearense de Escritores. Falcão faz pesquisa sobre as crônicas inéditas em livros de Milton Dias.
Data: neste sábado, 10/7/2010.
Saída: às 15h, do CCBNB (Centro Cultura Banco do Nordeste). Rua Floriano Peixoto, 941 – Centro.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Casa de Milton Dias, Rua Coronel Ferraz, nº 230, Centro.

Sábado, 10/07/2010, mediei o Percursos Urbanos promovido pelo Centro Cultural Banco do Nordeste
O tema literário foi Passeio com Milton Dias.
As fotos revelam imagens dos lugares visitados pelos passeantes, para quem foram lidos e comentados, durante as três etapas do Percurso, textos da obra miltoniana.

Silas Falcão


A crônica do Ceará sem Milton Dias
– O inspirado contador de estórias–

Morreu Milton Dias. Cronista. Escritor. Professor de literatura francesa. Solteiro. 64 anos, muitos dos quais dedicados ao O Povo e aos movimentos literários cearenses. Morreu ontem, de parada cardíaca, o poeta das cunhãs. O amante das coisas simples. Nem esperava pelo desfecho fatal e ele se foi, deixando na terra um impacto que tomou num rompante os seus amigos.
José Milton de Vasconcelos Dias morreu às 9 horas, na Casa de Saúde São Raimundo. Cedo, ainda madrugada, às 3 horas, começou a sentir dores e friezas, além de falta de ar. Chamado as pressas à casa do sobrinho, o médico Pedro Dias aconselhou que o paciente fosse transferido imediatamente para o hospital. Pedro Dias disse que, em nenhum momento, Milton se dera conta da gravidade do seu estado. Quando a equipe médica decidiu que ele deveria ir para o Centro de Terapia Intensiva, ele não quis, alegando que estava com “reumatismo e nada mais”, mas o cardiologista constatou que o miocárdio havia sofrido uma ruptura. Em outras palavras, era como se o coração tivesse rompido.

Ontem, Milton Dias se transportou para o outro lado da vida. E nem teve tempo de deixar um “Adeus” aos que ficavam.
Milton Dias – a eterna luz de um contador de estórias.

Jornal O Povo, 23/03/1983

Rua Coronel Ferraz 230, ao lado do Colégio Justiniano de Serpa
Carlos Vazconcelos, lendo a crônica autoral Passeio com Milton Dias.

Passeantes em torno do jazigo de Milton Dias. Jazigo 2, quadra 60, setor E do Parque da Paz, onde está o corpo de Milton Dias.

Silas Falcão, comentando textos da obra de Milton Dias.

Eudismar Mendes, declamando Confissão e Balada para o Encantado. Literatura intraonibus, quando nos deslocávamos para a Praça do Ferreira,
última estapa do Passeio com Milton Dias.

sábado, 3 de julho de 2010

PERCURSOS URBANOS

Olá!
Vamos passear?
Sábado, dia 10/07, às 15, o Centro Cultural Banco do Nordeste - CCBN - oferecerá aos amantes da literatura cearense o Passeio com Milton Dias.
É do seu conhecimento que Milton Dias - nosso eterno relembrado - recebeu estranha carta, acompanhada de um bilhete, em que o remetente esclarece haver captado o texto numa comunicação do Além, acrescentando que o autor, que se dizia leitor terreno do Milton, pedia a publicação da Carta do Morto?

Em que se transformou a casa de Milton Dias, na Coronel Ferraz, ao lado da praça da Escola Normal?
Enquanto visitamos os locais que ele frequentava, exploraremos a produção literária do grande poeta das cunhãs e contador de “coisas e casos, com graça, com efeito, com resultados imprevisíveis e, no comum, reveladores da precária condição humana, tão rica de equívocos e desencontros”.

Conto com sua presença.
Cordialmente
Silas Falcão - Mediador

sexta-feira, 2 de julho de 2010


Viagem à Praça do Ferreira

Antigamente era compulsório – pelo menos uma vez por dia se passava na Praça do Ferreira (nem faz muito tempo este “antigamente”) e nas esquinas ou nos cafés encontrava-se a vidinha provinciana, apanhavam-se os transportes. Pelo menos uma vez por dia, eu disse, mas frequentemente acontecia de se comparecer ate três vezes – ao final dos dois expedientes e à noite, para o cinema, o passeio, ou simplesmente para a descompromissada parolagem, naqueles bancos anatômicos, de saudosa memória, contando com o conforto da brisa, que passava branda e ligeira.
E lá estavam infalivelmente os jovens e velhos matriculados nas rodas diversas por onde corriam futebol, literatura, política, vida alheia, até o momento em que o relógio da coluna anunciava a partida do ultimo bonde. Bem me lembra o titulo da matéria com certa vez ganhei um concurso de reportagem – Bondezinho sonolento em cima dos trilhos – um apanhado de conversas que incluía esperanças, ambições, amor, mulheres, farras e mágoas. Algumas vezes pegava-se um deles dirigido por certo motorneiro bastante conhecido pelo pitoresco apelido de “Mamãe-dorme-só”.
Passou, passou. Hoje, de maneira geral, nem se vai mais à Praça, que lamentavelmente ficou impraticável, com o estacionamento impossível e de onde desapareceram as figuras amigas. A mim, só me ocorre ir ali por noite, para pegar os jornais do Rio, ou em missão de comprar medicamento, quando posso esbarrar o carro à porta da farmácia. E o momento em que a praça mais parece cemitério, triste, vazia, silenciosa, como aqueles grandes túmulos de cimento coberto de vegetação – só faltam cipreste para completar o quadro.

Mas sábado passado, pela manhã, me deu na cabeça de fazer uma ronda nas livrarias do centro – e me mandei a pé, tendo como ponto de partida esta ex-tranquila Rua Coronel Ferraz, que apesar de ainda amada, aos poucos nos via despejando, com a ameaça da construção de edifícios, o comercio deitando tentáculos, os carros promovendo o barulho constante.

Saí por volta das dez, tinha chovido às primeiras horas, mas já um sol vigoroso pontificava festivo. Ganhei o Beco dos Pocinhos (agora colocaram lá uma placa “Rua do Pocinho” – porque não restauraram exatamente o nome antigo?) fiquei considerando quantas vezes terei feitos este mesmo percurso ida e volta, nos quarenta e cinco anos em que demoro aqui na Praça da Escola Normal, com alguns intervalos de ausência.

Depois da Governador Sampaio, na calçada estreita, incuravelmente esburacada, procurei o coqueiro que vivia no quintal da Lindoca Borges – e me dei conta de que não existe mais. Quem sabe, teve o mesmo fado daquele da Casinha Pequenina “que, coitado, de saudade já morreu”. As donas da casa também já se foram há muito.

Justamente aí, onde parara um instante, encontrei o primeiro conhecido, um contemporâneo de Faculdade, que logo foi cumprindo sua vocação autobiográfica, contou-me as graças da aposentadoria, o automóvel, permanente lazer, as glórias de avô, o exercício de jardinagem com que entretém seu ânimo agrícola, a pequena horta no fundo do quintal, um arremedo de pomar a que não faltam o limoeiro, a goiabeira, a ateira, a bananeira. E depois da demorada entrevista, ao partir com seu sorriso de felicidade, me deixou refletindo que ali, sim, estava um homem plenamente realizado. Tão satisfeito com tudo, que nem pensa em viajar – Deus o livre. Ah, sim, apresentou-me triunfante o neto, um colosso de garoto de quatro anos, candidato a gênio.

Mais adiante, ao final do segundo quarteirão, quando já beirava a Sena Madureira, com quem me deparo! Uma velha amiga, que ao tempo da verde juventude, apesar de virtuosa, deu muito o que falar – e eu não via há tanto tempo. Caiu-me nos braços e terna e longamente nos rejubilamos pelo inesperado reencontro. Devolvemo-nos a patrazmente, despertamos lembranças comuns, festinha, amigos, namoricos e eu constatei com alegria que a distinta saiu do casamento em perfeito estado de conservação, muito mais bem tratada do que entes e durante a vigência do marido. Que aqui pra nós, eu sabia, não era flor que se admitisse em matrimônio, mal amante do lar, boêmio de terceira categoria, freguês de bares, hospede de cabarés. Finou-se, mas lhe deixou a casa própria, dois terrenos que já foram transformados em viagens, o bom montepio e a liberdade. Anda curtindo um verdadeiro esbanjamento de felicidade outonal.

Atravessei a rua, prossegui distraído. De dentro do primeiro bar, de repente soltou um bêbedo que me agrediu efusivo, gordo, velho, um vago conhecido de quem nem me acudia o nome veio intempestivo e fraterno, congraçante, alvissareiro, interceptou-me o passo com rapidez felina, jurou repetidos protestos de apreço na sua loquacidade incômoda. Não me soltava, contou que acabara de fazer uma aposta no Brasil (já por conta do campeonato mundial) e qualificou-se solenemente como aposentado do INPS. Quanto eu mais eu me despedia mais ele me agarrava com uma chave de braço. Confessou-se meu leitor e o confirmou recordando algumas crônicas. Ate que me ocorreu uma mentira salvadora, invoquei uma consulta médica marcada, estava em cima da hora.

Daí por diante, na minha frente, caminhavam duas velhotas em compasso lento, o andar comprometido em cima de sapatos cambaios, os vestidos surrados, as bolsas prudentemente presas ás axilas. Conversavam animadamente, apurei o ouvido, pensei que se queixavam da carestia. Mas não, estavam ambas se gabando dos sucessos das famílias respectivas, cada uma ilustrando seu tema com exemplos, nomes, títulos, vitórias e cursos. A mais velha citou uma filha portadora de diploma de datilografia, outra namorando um rapaz de fora, a terceira, se não era subgerente da loja em que trabalha, era mesmo que ser – tudo ela sabia.

Quando atingi a Praça já eram onze horas, fui abordado por vendedor de bilhete de loteria, por mendigos, um vendedor de pente ( que teve a audácia de me oferecer ), uma mulher com subscrição para internar o filho enfermo e por dois chatos que descartei de pronto, usando a mesma desculpa do médico.

E no ponto em que já alcançava a livraria, um moço aprendiz de poeta me tomou bom tempo, recitando, empolgado, versos próprios e comunicando seu propósito de se inaugurar em livro. Quando menos esperei, já era meio-dia, cambei de volta num táxi, com receio de que o retorno consumisse o mesmo tempo.

Decididamente foi uma manhã de encontro com gente feliz. Deixa estar que no próximo sábado eu vou mais cedo.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Rosemilda

Rosemilda, que agora se apresentou para o emprego, faz gênero sonhador, para não dizer delirante, ambicionando possuir automóvel e bela casa, por caminhos honestos, verdade que estuda, mas ao que tudo indica superestimar seus conhecimentos, pois, apesar de ter terminado o ginásio, tropeça na língua-mãe miseravelmente – e na escrita, numa simples nota para supermercado, comete erros de arrepiar.

Na cozinha não é das mais brilhantes, nem na copa, mas é relativa boa índole e leva a maior parte do tempo a fazer planos para o futuro, no que, aliás, anda muito bem e no que conta com a compreensão da patroa, já preocupada com seu vestibular. Sim que pronunciando “musga”, “parteleira” e “degrais” não pode alimentar esperança para a vitória na prova de Comunicação e Expressão. Sobretudo depois de restaurada a redação.

Um dia destes, atendendo ao telefone, alguém que lhe indagava sobre uma certa receita de bolo estrangeiro, informou que só sabia trabalhar com receitas “nocivas” ( receitas nossas, bem se vê). Donde se conclui que em matéria de culinária é extremamente nacionalista, embora a cozinha regional sofra nas suas mãos os mais graves insultos, incapaz que é de praticar uma boa paçoca ou um cuscuz.

O físico não autoriza pretensão de brilhantura em concurso de beleza – pequena, o pescoço atarracado, os olhos tirando um pouco sobre o estrabismo, as perna curtas e o cabelo, se não chega a ser mais longo que seu breve talhe, alcança a cintura. Esse dito cabelo denunciando ascendência negra, é clareado metodicamente cada semana com um preparado especial de fórmula própria. Despreza superiormente as mulheres que ainda usam água oxigenada, e na conversa pernóstica, com jeito manhoso, deixa entender que tem legiões de fãs. Os quais, pelo visto, ainda não se decidiram, pois Rosemilda Peixoto (é assim que se chama) já navegava pelos 35 anos e continua inupta.

Nasceu no Cariri e continuará fiel à devoção ao Padre Cícero, mas freqüenta regularmente uma sessão espírita, donde traz noticia dos seus finados particulares, que felizmente lhe anunciaram sempre caminhos novos. É lá que se abastece de esperança.

Agora está correndo alguma coisa mais grave: entendeu de escrever sua vida, que ela chama minha “autografia” – já marcha para o terceiro capitulo e está sendo incentivada a continuar. Quem sabe, depois de terminado, pode estourar nas livrarias. Começa assim:

“Nasci no dia 11 de agosto de 1942. O que mais recordo é quando minha mãe morreu e meu pai indelicado, dentro de dois mês casou-se com uma cobra, daquelas mais venenosa que nem São Jorge, com a ponta de lança, pode com ela. É tão danisca que querendo ser santa já se botou pra outros homens e meu pai inocente não acredita no falar de ninguém, nem mesmo nos conselhos das filhas. Não precisa dizer mais nada, porque ela é ruim pros próprios filhos quanto mais pros enteados que já deram no pé que ninguém é besta pra agüentar maltratos a até sopapos, sendo que deu de cabo de vassoura na minha irmã caçula, até tirou sangue. Está aí o enfermeiro do posto que não me deixa mentir, que foi quem atendeu ela. Saindo do posto ela foi direta pra casa duma tia minha que também não é flor que se cheire e aí também sofreu muito até que se empregou. Eu sou a segunda de seis irmãos, sendo o mais velho um já casado e três que morreram e outra. Tive vontade de ficar em casa pra proteger os menores mais um dia nós pegamos uma briga eu mais ela que foi murro prá lá murro prá cá então eu não tive mais condição de ficar no mesmo teto. Neste momento dia da briga eu me apresentei na casa duma conhecida Dona Rosa que foi quem me salvou e também arrumou emprego pra mim no Crato porque meu destino sempre foi correr as terras. Só não dei parte na polícia porque não sou mulher de escandêlo. Ate que um dia uma família de Fortaleza me prometeu mundos e fundo e eu vim só não me arrependi porque sempre eu quis ser gente e comecei a estudar. Ainda vou fazer faculdade e a Deus querer me formo e ainda tenho fé em Deus que esfrego o meu diploma na venta da minha madrasta chegando lá dirigindo meu fusca. Este carro é o ideal da minha vida. Casamento já enjeitei mas estou acordada pra casamento me encher de filho e não continuar meu sonho e ainda agüentar abuso do marido. Sim que encontrando um direito, como eu penso e ele estando de acordo de eu continuar nas letra eu aceito com esta simples condição. Se eu vivo de doméstica é porque me garante a dormida, o comer e o ordenado também tem uma coisa patroa comigo não venha com desaforo portanto já deixei várias casas quando elas gritam. Outras eu deixei por enxerimento do patrão e outra foi o filho mais velho que quis se botar pra mim”

Aí está uma amostra da autobiografia de Rosemilda, que me foi confiada pela patroa e em que pese apenas melhorei a ortografia e acrescentei algumas vírgulas para facilitar a compreensão. Bem se vê que a moça vai em frente, com esperança, coragem e obstinação. E que estaremos em maus lençóis – a patroa e eu – se estas linhas caírem sob os olhos da futura escritora.

De As Cunhãs
A Mal Amada

Quando Jacinto passou da fazenda pra cidade, era um rapaz de vinte anos, bem preparado nos trabalhos do campo, onde fazia de um tudo, desde menino – cuidava do gado, ferrava bezerro, amansava poltro bravo e se desobrigava do que lhe era confiado com muito desembaraço – tudo indicava que carregava vocação para vaqueiro. E era forte com um touro, o corpo à prova de vírus, vacinado por natureza contra tudo, inclusive contra o alfabeto. E alegre, prosista, parecia tão feliz, que não se podia imaginar tivesse ambição senão a de viver ali mesmo, casar, ter filhos, netos, como o pai, como a avô.

Qual nada. Um dia, chegou ao patrão, que era também seu padrinho, confessou que estava abusado do trabalho na fazenda, queria ir para a cidade. Pensava, com certeza, nas vadiações da noite; não vê, mais de uma vez, nas rápidas viagens a Massapê, pegava uma menina, daquelas que lá chamavam mulher-dama e que lhe trazia alegrias e graças que as poucas donzelas do Altinho não podiam dar.

Com alguma resistência, o coronel concordou. E na casa grande da cidade, Jacinto se tornou, dentro de pouco tempo, peça indispensável – não escolhia serviço, ia buscar água no rio, cortava lenha no mato, dava recado, se encarregava do estábulo, era um alho de esperteza e de bom humor. Pegou namoro com uma moça da vizinhança, cria da casa de outro coronel, mas quando assuntaram casamento, ele deu no pé.

Que seu fado, ele mesmo disse repentinamente, era ganhar o mundo, queria viajar, conhecer o Amazonas, o Rio, São Paulo. No momento em que se dispôs ao segundo passo, partir para a capital, o padrinho desaconselhou energicamente, profetizou que ele ia passar fome, tinha certeza de que voltaria magro a arrependido, como muitos outros. E concluiu a falação, rápida e incisiva, com aquele provérbio muito castigado na boca do povo – formiga quando quer se perder, cria asa.

Com todo o respeito que tinha ao coronel, Jacinto reafirmou sua vontade, convocou as reservas de coragem e num tom de aparente humildade, mascarando o atrevimento, arriscou-se a dizer que cobra que não anda não engole sapo. Ao que o coronel respostou que boa romaria faz quem na sua casa está em paz.

Depois do diálogo breve, o coronel seu padrinho lhe deu a benção, pagou o ordenado, soltou mais algum dinheiro, receitou juízo e fez um bilhete para o filho doutor, recomendando-o. O qual doutor o empregou imediatamente em casa, para as compras, para o jardim, a limpeza do quintal, o enceramento. E ele dava conta de tudo muito bem, num instante pegou o que ensinaram, aprendeu e dominou a cidade.

Fez economia, comprou camisa vistosa, calça azul, sapato branco e se diplomou em conquistas, começando, é claro, pelas cunhãs da vizinhança, numa esperteza que o levou às glórias da noite com grande rapidez, sobretudo à reinação numa certa gafieira, “A Corveta”, onde, segundo ele dizia, só entrava moça. Foi lá que começou seu rosário de peripécias.

Primeiro foi aquele amor tumultuado com Judite Gonzaga, que também vinha do sertão, também perseguia a conquista do mundo, também, como ele, aprendeu as afoitezas da capital, com a agravante duma surpreendente capacidade de assimilação: imitava a voz, as maneiras, o modo de vestir das patroas, tirava um pouco sobre a grã-fina, pegou vocabulário novo que frequentemente estropiava na boca ampla, de riso grande.

Bem que o espanhol diz: o homem é fogo, a mulher é estopa – chega o diabo e sopra. Pois o demônio soprou entre Jacinto e Judite, deu-se o maior incêndio de amor na historia da Aldeota e adjacências e, nas labaredas, muitas noites foram queimadas com bastante amor, briga, ciúme, ameaças mútuas. Até uma vez compareceram a uma delegacia. E, como saldo final, um menino veio à luz sem consulta previa, naqueles tempos difíceis em que não se contava com a proteção da pílula.

A presença do menino no mundo marcou o final do romance. Jacinto nem se interessou por conhecer o filho, mudou de emprego e de bairro, contraiu novos amores ao som de outras irradiadoras, gozando a rica vidinha. E, uma manhã, quando aguava o jardim, assobiando seu bolero de estimação, apareceu Judite, com o menino nos braços. E, num gesto dramático, usando a frase que um samba de então pusera em voga, foi gritando patética:
– Toma que o filho é teu.

Isto posto, deitou o menino no batente, ao alcance do olhar paterno, com o sol por testemunha – e se mandou.
Pensam que o Jacinto se importou? Continuou de mangueira em punho regando tranquilamente o gramado, ignorou a presença da criança na embalagem de cueiro, a chupeta caindo, sofrendo calor e o passageiro desamparo. A dona da casa, atraída pelo choro do menino e não querendo assumir a responsabilidade e nem se eximir da sua caridade cristã, ordenou categórica:
– Tira essa criança do sol, rapaz!
E Jacinto, sem se mover, sem se comover, sem interromper o trabalho, limitou-se a responder:
– Eu quero é que ela morra!

Judite, a mal-amada, a primeira das Gonzagas que emigrou do sertão, escondida a uma distância prudente, acompanhara os lances, esperava que o menino traria de volta o pai aos seus braços morenos, longos e envolventes. Desenganada, depois de algumas horas, foi recuperar o filho no local em que o deixara. Ali mesmo xingou Jacinto ( que ela tratou ao mesmo tempo de inseto, de monstro e outros nomes impublicáveis), jurou que o pegaria de navalha, numa calada da noite, quando estivesse com outra.

Mas antes e depois deste ameaçado encontro, muita coisa aconteceu: muito vento, pela boca do diabo, soprou naquela estopa.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Madrugada I

É madrugada, a última deste mês de setembro, e eu mergulho nela sozinho, numa sala pequena, dentro do silêncio grande, que o apito dum guarda desrespeita de vez em quando – e cumpro cautelosamente mais uma insônia, entre lembranças velhas e novas. Uma dessas, a mais antiga, vem dos longes da infância, ainda ao tempo das trevas que a luz elétrica só dissipou muito depois, em Santana do Acaraú: um carro atravessa lentamente a praça enorme da igreja velha, com os faróis queimando a noite jovem – e, de dentro dele, uma bonita voz de homem, voz anônima, forte, lírica, perdida, solta, derrama uma despedida dramática certamente dirigida à bem-amada que o devia escutar soluçando de alguma janela: “Eu vou pra bem longe de ti saudosamente / Adeus minha querida / Querida Guiomar / Adeus, eu vou partir, vou pelo mar.”

Quem seria aquela mulher (seria uma mulher ou apenas uma rima?). De quem seria aquela voz que só ouvi uma vez e me transmitiu uma imensa vontade do mar, meu desconhecido, uma grande nostalgia das distâncias, dos mistérios do mundo, deixou-me a imaginação indócil, enquanto o carro, levantando poeira, desaparecia na rodagem, exatamente ali onde um pé de resedá marcava a curva do caminho? Onde andará aquele cantor? Aquela moça onde andará? Será que se uniram?

Acabo de ler um trecho de diário alheio e fico pensando que a leitura dos diários me comove mais do que as autobiografias ou as biografias, me parece mais verdadeiro este registro cotidiano dos acontecimentos, dos pensamentos, dos sentimentos – as penas e alegrias, as depressões, as angústias, as vitórias, os fracassos, os amores – tudo posto ali com uma coragem impressionante, os momentos mais íntimos, as horas difíceis, os pequenos dramas, as covardias, os heroísmos, as emoções de cada dia, os medos, os ódios, os ressentimentos, tudo confiado ao papel. E chegada a página final, a pergunta amarga, inevitável – será que valeu a pena registrar assim, minuciosamente, conscientemente, uma vida toda, para depois entregar tudo ao respeitável público (nem sempre respeitador), como quem se desnuda no palco?

E vem outra reflexão tácita – a de que aquele que escreveu o Diário, que também teve fome e sede, que conheceu glória e humilhação, que sofreu ambições e se frustrou em muitas delas, e se realizou em algumas, aquela vida que está em minha mão, escrita no papel frio, repousa agora debaixo do chão, já resolveu todos os seus problemas e conflitos terrenos, dorme em paz com Deus. Abro por acaso uma das páginas, vejo uma preocupação momentânea que o martirizou tanto e que agora parece tão mínima!

Penso que daqui a pouco será outubro e fico triste. Outubro não me agrada, nem é começo, nem meio, nem fim de ano, o mais antipático de todos, poeirento, calorento. Nele perdi meu pai, nele perdi um amigo – é certamente o que mais me tem cobrado apreensões e sofrências.

As paredes desta sala onde me encontro foram testemunhas de outras insônias e as mãos dos que as fizeram levantar já estão vazias definitivamente. Esta mesma pequena sala que agora abriga um homem insone já recebeu noivos para as comemorações e cumprimentos, já acomodou o corpo morto do seu dono, esta sala ouviu conversas e queixas, discussões, esperanças e prantos. A casa toda, em que estou absolutamente só dentro da madrugada, já foi povoada de muitas vozes e de muitos passos de jovens e velhos que desapareceram carregados pela morte ou levados pela vida.

Há um silêncio respeitoso e tranqüilizante envolvendo, purificando o mundo, velando, protegendo o sossego e o sono, um silêncio discreto que esconde o que agora ocorre nas sombras protetoras. Quem sabe, alguém está se matando neste momento, alguém deve estar amando neste minuto. Tem gente chegando, tem gente partindo, a esta hora a população está crescendo. Ou está diminuindo?

Abro um instante a janela, consulto o céu: não há uma estrela, fugiram todas, me deixaram no mais completo abandono. Nem posso imitar o poeta que conversou com elas toda a noite, tresloucado amigo.

Agora um galo solitário solta um grito precursor, distante – será mesmo hora de cantar anunciando a aurora, ou será um galo tresmalhado, desinsofrido? Olho o relógio, são duas horas da manhã, concluo rápido: aquele também está sem sono – e canta.

Um latido inesperado de cachorro se levanta aqui na Praça da Escola Normal. Será um protesto ou um apelo, uma queixa ou uma denúncia, um lamento, um convite ou apenas a voz dum cão que não dorme?

Escuto religiosamente os silêncios e as vozes da madrugada – enquanto a minha rua dorme, eu guardo, sozinho, de olhos acesos, a insônia fecunda.

De Entre a boca da noite e a madruga – 1971

segunda-feira, 21 de junho de 2010


Salmo do Homem Só

Senhor, tende piedade dos Sós.
Mandai Senhor, para o Homem Só, a mulher conveniente, a que se resigna às recomendações da Carta de São Paulo aos Efésios, a que seja amante, esposa, irmã e companheira, submissa e terna, a que tenha a humildade das mulheres bíblicas e a grandeza e a coragem de todas as que souberam se sacrificar pelo Bem-Amado.
Mandai, Senhor, para o Homem Só, a mulher compreensiva e laboriosa, mandai a doce mulher exclusiva, parcimoniosos e amiga, aquela que seja feitas à imagem de Marta, à semelhança de Maria, a que tenha de Sara e Ruth, a que não gurde no seu sangue nenhuma lembrança de Salomé, nem de Atália, nem de Jezabel.
Mandai, Senhor para o Homem Só, a mulher certa.
Da falsa loura, imprudente, impiedosa, cansativa a caluniadora, livrai-nos Senhor.
Dai-nos a outra, a de cabelos dourados e olhar azul-mediterrâneo, a silenciosa, a de alegria discreta e constante, a que sabe esperar, a que sabe escolher, a que sabe acolher, a que receberá o Homem Só como seu Messias.
Da morena copiosa de olhar víbora, aliciante como o das serpentes, daquela que atraiçoa com encantação, da que esconde o veneno na boca do sorriso, daquela que mistura mel com hipocrisia, livrai-nos senhor.
Dai-nos a outra, a morena que tem beleza das mulheres trigueiras do Cântico dos Cânticos, a que pelo Bem-Amado se submete a todas as penas, a que o espera sem contar as luas, a que é fiel por atavismo, adorável e amorável pela própria natureza. A que não conta as léguas do caminho para o encontro, a que não respeita nem o sol, nem a chuva, nem o vento para o encontro, a que chora pelo encontro, a que ora pelo encontro, a que ri pelo encontro.
E no encontro é a mais feliz, a m ais suave, a mais felina, a mais amorenta, a mais humana de todas as mulheres. A que aprendeu a dar a cada minuto a força da eternidade, a que esconde lágrima, a que esquece queixa a apaga sofrimento, a boa, a bela, a generosa mulher morena.
Da mulata traidora vocacional, daquela de sonhos impossíveis de palco e passarela, de câmeras, refletores e aplausos, da que deseja o largo mundo, a cidade tentacular, os caminhos dos pássaros, o mar grande, as glorias espaciais, livrai-nos, Senhor.
Dai-nos a outra, a simples, a que veio da melhor miscigenação, a que trouxe do caldeamento a franqueza branda, a dignidade sem orgulho, a fidelidade sem alarme, a modéstia sem ostentação, o amor tranqüilo, feito de verdade e de renuncia, amor constante, sincero e fecundo. Aquela que traz na voz a quentura e a nostalgia das três pátrias ancestrais e, no gesto e nos meneios, a graça de muitas gerações, a que traz nas mãos promessas nunca reveladas, a que esconde no olhar a receita da atração que se vem transmitindo intata a todas as mulheres da sua cor tão especial.
Da preta graciosa e demoníaca, daquela trêfega, insinuante e ciumenta, que disfarça nas blandiciais da voz africana os sortilégios insuspeitos das estranhas forças da sedução que conduzem ao mal, livrais-nos Senhor.
Dai-nos a outra, a descendente em linha reta da mãe preta, herdeira das cantigas de ninar, a que guarda segredos culinários e ternuras quentes, a que carrega musica na alma, leveza no corpo, volúpia nos olhos, a que labora e ajuda, a que se dá sem pedir cambio, aquela que nasce por amor, a que vive, a que morre por amor.
De todas as outras, Senhor, as que não queremos ver do corpo nem pensamento, as amargas, as tristes, as infiéis, as hipócritas, as impudicas, as inimigas, as loucas, livrai-nos, Senhor. Dai-lhes muitas alegrias, concedei-lhes a paz, a prosperidade, a boa sorte e as conservai longe de nós.
Mandai, Senhor, para o Homem Só, a mulher certa.

De Entre a boca da noite e a madrugada, 1971





Entre a boca da noite e a madrugada, muita cidade passou, muito caso eu aprendi, muitas pessoas ganhei, outras tantas eu perdi, vi gente de toda sorte, gozei encontros com a vida, sofri encontros com a morte.
Muita angustia foi calada, muita mágoa foi oculta, muito caminha andado, muito sapato acabou, muito custou aprender no grande livro do mundo.

Tanta surpresa encontrei nos olhos do mau vizinho,, tanta traição morava na mão que bondosa vinha, tanta pérfida intenção por trás da palavra amor, às vezes desinlusão trazia o nome do amigo, tanto fogo já pegou no meu embornal de sonho, tantya rosa ficou murcha, tanta mulher me queimou, tanto verso se apagou, tanta prece foi rezada na hora aflita da dor.

Tanto pôr-de-sol guardei, tanta noite não dormi, tanta insônia cultivei, madrigada apascentei, muita aurora atocaiei, muitas estórias ouvi, algumas delas contei, outras tantas escrevi.
Tudo, entre a boca da noite e a madrugada

Entre a boca da noite e a madrugada tudo aumenta – o amor, a paz, o sono, o sonho, o silencio, o ódio, o mistério, o medo, a população.

De Entre a boca da noite e a madrugada, 1971

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Geralda

De como apareceu não digo porque não sei – nunca me foi contado nem eu perguntei: quando a conheci em Massapê, já foi feita criada na casa de pessoa do meu sangue, encarregada dos serviços mais grosseiros, pois em tudo mais era um desastre completo: quebrava a louça, nunca acertou um ponto do arroz e, nessa fase dolorosa da experiência culinária, mais duma vez deixou queimar o feijão. Também para recado era imprestável, burra, meio gaga, atordoada. Ah, sim, atordoada, é bem o termo. Incapaz de reproduzir uma conversa, de contar o fato mais simples sem estropiar as palavras e sem deformar a estória.

Não tinha ninguém de seu mundo e dessa orfandade ela procura tirar partido, falava frequentemente como quem se gaba da desgraça, pleiteando prestígio. E desarrumada, feia, suja, zambeta, situava exatamente na linha fronteiriça da loucura.

Chamava-se Geralda – e quando andava pelos dezoito anos (nunca ninguém lhe soube a idade exata), fugiu de casa e o fez tão surpreendentemente bem, que não deixou pista – pois se é certo que a inteligência lhe faltava, a astúcia acudia sempre. Há quem malde que foi insinuada por algum sedutor barato, que lhe teria ensinado o velho truque de entrar no trem e se esconder no banheiro, enquanto o comboio não dava partida. Outros acham que se mandou mesmo a pé.

Passou-se, passou-se, teve-se uma dita noticia dela aqui perto, em Maranguape, exercendo a profissão de guia de cego. E como seu destino era mesmo Fortaleza, não deu muito tempo aportou aqui e acabou batendo, por acaso, na porta duma irmã da senhora que a acolhera na infância vadia e donde fugira sem deixar sinal.

Aí resolveram admití-la, não sei bem se por bondade, ou se por algum disfarçado interesse, numa faixa em que a safra de cunhã andava seu tanto vasqueira. O fato é que ficou (certamente animada pela fome) – e como já sabiam que não era de muitas virtudes, nem de grande engenho, foram-lhe dando as tarefas mais condizentes com a sua incompetência.

O ensinamento paciente da patroa conseguiu alguma coisa, melhorou a aparência e chegou a habituá-la ao uso regular do pente, naquela cabeleira rebelde de modelo black power. Sim que não era preta, nem branca, nem mulata – era melada, alvaçarenta – sei lá, daquela cor indefinida de terra, dum amarelo macerado e doentio. Um dia, que foi ao centro da cidade, a colega que a levou resolveu lhe dar de surpresa e de presente um copo duplo de caldo de cana. Tivesse Geralda mais sensibilidade, imediatamente se teria sentido devolvida aos pagos antigos, pois também, ao que vagamente se sabe, vivera nos primeiros anos ao pé duma moenda, em casa de engenho.

Quando tomou a primeira golpada, a outra, que tivera a idéia generosa de brindá-la com bebida que lhe deveria ser muito grata ao paladar, perguntou se estava gostando. Geralda interrompeu o gole, estalou a língua como quem aprova, à procura de identificar o que bebe, saiu-se inesperadamente com esta: – Na minha mente eu já bebi isto! Ao que a companheira, obviamente desapontada, informou: – Menina, tu conhece demais. Isto é garapa de cana. E Geralda: – Lá vai. Cadê o cisco? Cadê o cisco?

Mais cedo do que se esperava, deu-se o inevitável: caiu de paixão por um preto que se dizia aprendiz de carpina, virtuoso consumidor de cachaça, contando no seu trêfego currículo algumas entradas na polícia, uma delas na baderna no Forró da Loura. A patroa, de velha formação moral e religiosa, testemunhando a avanço rápido da barriga da “ingênua seduzida”, resolveu promover o casamento. O que, aliás, não foi difícil: Chico (era assim que tratavam o demônio do preto) concordou tranquilamnte e comemorou o matrimônio com uma carraspana heróica. Tudo arranjado resolveram devolvê-los ao sertão e embarcaram os dois, dignamente, de ônibus, para Massapê – pois queriam ir mesmo para o interior e já os tinha engajado, a distancia, nos trabalhos duma pequena propriedade.

Foi lá que encontrei Geralda. Estava mais magra, aparentemente alegre, curtindo luto num vestido preto novo, em honra ao finado marido. Coitado do Chico, teve doença longa e morte lenta. Quando agonizava de madrugada, Geralda pediu, oportuna e comodista: – Chico, tu vai morrer agora não, que eu tou morta de sono. Tu não vai morrer agora não, viu? Nisto cochilou e, quando abriu os olhos, Chico tinha fechado os seus, definitivamente. Já era com Deus.

Pois um dia deste, lá mesmo em Massapê, chegou a dita Geralda na casa da primeira patroa, usando a máscara oficial do desespero, os olhos saltados, a fala impossível pelo cansaço da corrida, os gestos desgovernados. Derramou-se numa cadeira, chorando choro alto, incapaz da explicação mínima.

Depois de muita instada, conseguiu falar aos tropeços, entre soluços intermináveis: – Eu acho que matei minha sogra. Taquei-lhe o pau na cabeça, que o mel correu. E, no mesmo tom, como se viera ali só a isto, pediu aflita: – Pelo amor de Deus me arrume um copo de café-com-leite.
Curioso é que se acalmou de repente (donde se conclui que café-com-leite é mesmo tranquilizante para quem tenta matar sogra) e já de tardinha, por imposição de todos, foi obrigada a voltar pra casa: tinha que ver pessoalmente o que de fato ocorrera.

Apareceu dois dias mais tarde e, quando lhe pediram notícia da vítima, informou debicante e gaguejante: – Aquela vea lá morre. Ela queria era me fazer medo. Só uma pancada de pau e uma rachadura na cabeça não dava pra cair ciscando no chão, como quem dá ataque. Tudo pra se mostrar. Era só amostração.
Pior é que andam falando mal dessa dita Geralda. Como é que pode?

De Outras cunhãs, 1977

quarta-feira, 16 de junho de 2010


De: Milton Dias
Para: Pedro Salgueiro *
Nós, os carecas

Amados irmãos que já estamos despojados da nossa saudosa cabeleira, conformemo-nos: nosso mal é mesmo sem remédio. Domingo passado um programa de televisão deitou impiedosamente a última pá de cal nas nossas vagas esperanças e nos conduziu à lamentável conclusão de que nunca mais usaremos pente, nem brilhantina, não mudaremos de penteado, nem contaremos os fios de cabelos brancos que vão apontando como marca indelével do tempo. Ficou mostrado que não adiantam remédios, nem loções, nem pomadas (lembram-se daqueles tônicos de nomes sonoros anunciados como milagrosos, que abriram muita ilusão?), pois é, não vale a pena tentar massagens, meizinhas, nem raízes, nem rezas. O mais lógico, o mais sadio e mais saudável é assumir a careca, é abrir o jogo corajosamente, conscientes de que a queda não nos atinge a personalidade, não nos faz falta, nem diminui – e ainda nos resta o consolo de que estamos em muito boa companhia: é impossível contar o número de escritores, poetas, filósofos, cientistas, artistas, de altos nomes da indústria, do comercio, da política que já estão de cabeça pelada – basta passar uma vista nos auditório de congressos nacionais e internacionais.
E ainda mais – temos expressivos representantes no cinema – aí estão Yul Brynner e Telly Savalas, o Kojak, que não me deixam mentir, brilhando nas telas, aceitos e festejados como símbolos da masculinidade, arrebentando jovens corações que lhes fazem aquelas mesmas eternas juras de amor que foram feitas a bonitões cabeludos. E na televisão, no teatro, no cinema brasileiro, Raul Cortez (agora casado com Tânia Caldas, considerada uma das mulheres mais bonitas do Brasil), estão Ítalo Rossi e Cecil Thiré.
Colho animadora notícia numa revista dos Estados Unidos: recentemente estatísticas americanas revelam que os carecas são fascinantes aos olhos femininos. A grande maioria das mulheres prefere os calvos – diz lá a nota. E como se não bastasse, a estatística garante que é raro encontrar um homem sem cabelo que não tenha situação econômica bem acima da media. Outra revelação importante é a de que os carecas são bons maridos, são poucos sujeitos a doenças do coração e males do estômago. Acrescento aqui uma informação do professor Murilo Martins, que tantos anos trabalhou em hospitais americanos: lá chegaram à conclusão, também apoiada em estatística, de que careca não tem câncer do pulmão. Pelo menos deste, nós estamos livres.
Nos meus tempos de menino, no interior, conheci um senhor que mesmo em casa conservava o chapéu, para esconder a superfície craniana – e por esta mesma razão deixou de ir à igreja onde, obviamente, teria que se descobrir. E era pai de família numerosa, homem que já dobrara a faixa dos cinquenta, já conquistara o que tinha de conquistar, estava bem abastecido de filhos e netos, não tinha motivos para guardar grandes ilusões no plano donjuanesco. E ainda que os tivesse, seria ridículo desistir do bom combate só pela falta de cabelos: infeliz de quem depende deles para conquistar uma mulher – é o mesmo que subestimar outros valores, reconhecer a ausência de qualquer encanto, é o mesmo que desmerecer a inteligência, o charme, a boa conversa, a bondade, a personalidade.
Uma jornalista inglesa, Jill Butterfield, conta que na época de guerra, quando trabalhava lotada numa cantina da região de Gales, conheceu um ferreiro alto, forte, um verdadeiro gigante, que passava horas e horas cavando um quintal minúsculo. Quando voltava do acampamento, encontrava-o com as costas brilhando ao sol, curvado sobre as flores que lhe ocupavam todo o tempo livre. Depois tornava ao banho, vestia uma camisa limpa e vinha tomar chá na cozinha, onde a esposa o esperava. A jornalista passou a prestar-lhe mais atenção quando notou que o homem nunca tirava o pequeno boné, nunca i vira de cabeça descoberta. Até uma noite em que foram bombardeados, desceram juntos para o mesmo abrigo, o boné caiu e ela descobriu que seu amigo ferreiro era calvo como uma bola de bilhar. No dia seguinte – continua Miss Butterfield – depois que o amável gigante saiu para a oficina, sua esposa contou-lhe que ele tinha enorme desgosto de ser calvo. E acrescentou: – Coitado, não acredita nunca que foi isto que me enfeitiçou. Faz uma pausa, refletiu, soltou a confissão lá na sua língua, que pode ser assim traduzida: – Desde mocinha me amarro em careca.

O psicólogo norte-americano Bernard Perkins declarou que a calvície é o índice mais seguro de inteligência masculina – o que um poeta nosso comentou nesta quadra:
Para os carecas do mundo
Traz a notícia um consolo:
Por fora – pouco cabelo
Por dentro – muito miolo.

Vai também aqui esta “Ode a um quase calvo”, não sei de quem:
Ontem, hoje e amanhã
O homem o cabelo parte
Parte o cabelo com arte
Até que o cabelo parte.

Em outubro de 1974 apareceu no mundo a noticia de que um composto de silicone no pelo das cobaias, teve por resultado que tais pelos cresceram tanto, que com eles foi possível fazer tranças. Isto aconteceu no instituto de Química Orgânica de Irkutsk, na Sibéria. O novo produto se chama Mival, em homenagem aos cientistas que o criaram – Mikhail Voronkof e valery Dyahov. Foram feitas experiências em seres humanos e se anunciva com reservas que os resultados tinham sido promissores. Tudo indicava que o silicone seria brevemente um bom restaurador de cabelos humanos. Qual nada, já lá se vão oito anos e não se TVE mais noticia – prova de que o medicamento não funcionou.

Comentando o fato, na época, conhecido cronista brasileiro, imaginando as reações que ele suscitaria, identificou dois tipos de carecas: – o neurótico e o conformado, esclarecendo: “O neurótico é aquele que faz tudo para disfarçar a calvície, razão pela qual sua hipocondria se circunscreve à caixa craniana. Não deixa de comprar qualquer remédio anunciado como capaz de fazer milagres nesse setor. Submete-se a massagens, penteia-se cuidadosamente de modo a esconder o avanço da calvície, sonha com o implante capilar. O outro tipo não dá muita bola para a aparência exterior. Quase sempre é necessário que algum gaiato lhe grite na rua:” ô careca” para admitir finalmente que anda com entradas de testa muito pronunciadas”. Para mim, o pior deles é aquele que deixa crescer fio de cabelos nos lados e os atravessa pelo meio da cabeça de ponta a ponta, de orelha a orelha.

Bem, eu faço parte do grupo dos conformados, já estou com a careca bastante calejada, muito batida, muito acostumada ao sol e à chuva e aos comentários indiscretos das crianças, que quando me vêem a primeira vez não deixam de observar: – Olha, papai, este homem não tem cabelo. Ao que o pai, constrangido, tirando um pouco sobre a aflição, com medo de ofender, impõem silencio. Aí o garoto insiste: – Tem não, papai. Pode olhar. Não tem nenhum fio.
Aos colegas veteranos carecas não tenho, evidentemente, conselhos a dar. Mas aos que vão começando agora a carreira, eu lembro que na hora da depressão maior recorram à marchinha carnavalesca que fez tanto sucesso aí pelos idos de 40 – “Nós, os carecas/ Com as mulheres somos maiorias/ Pois na hora do aperto/ é dos carecas que elas gostam mais”. E se tiverem dinheiro, compareçam àquele congresso internacional dos carecas, que se realiza todos os anos na França.

Se estes consolos não baterem, peguem estas palavras e reflitam na sua sabedoria: “A grande vantagem da calvície é que deste modo ninguém nos insultará os cabelos brancos”
De A Capitoa – 1982
* Grifo do autor do blog


Tarde na minha praça

Agora eu digo como o velho Cardeal Gonzaga: “tão simples tudo”. E tudo tão bom, tão calmo, tão bonito, tão puro como a benção de Deus Nosso Senhor. São duas horas da tarde duma quarta-feira e um sol radioso ilumina a minha praça, um vento vadio que nasce no mar vem cochichar nos cabelos da moça de vermelho que passa displicente aqui na calçada. Um céu de claro azul, igual, nos cobre agora, sem uma nuvem. Não, minto: ponho a cabeça na janela, alongo o olhar, vejo que por detrás da Escola Normal elas se juntam brancas, paradas como nuvens de papelão. Certamente dentro de algum tempo, comboiadas pelo vento, desfilarão aqui em cima da minha casa.
Quem vê, diz que o sol saiu deitando cor na terra, foi ele quem fez o verde mais verde, o amarelo pálido do telhado defronte está quase abóbora, a grama ganhou brilho, até o capim ralo, a vassourinha verde que nasce e cresce por conta própria, parece mais alegre. Aquele verde desbotado pegou vida. Flores não há, infelizmente. Onde estão as flores desta cidade? Houve tempo em que as havia nos jardins públicos. Se há os que não amam as flores, deve haver os que gostam e cuidam delas. Por que a Prefeitura não cria uma guarda municipal para se ocupar dos canteiros que mandaria plantar? As pacaviras exigem tão pouco, as boa-noites não exigem nada. Até as papoulas são modestas, pedem mínimo.
Tão simples tudo. Um homem dorme tranquilamente, aproveitando a sombra do caminhão, dorme debaixo, é talvez o ajudante que guarda o carro e aproveita a sua proteção, dorme numa atitude de sossego absoluto, tão sem problema, nesta hora em que banqueiros se preocupam com cifras, agiotas ambiciosos protestam letras e industriais discutem a produção das suas fábricas e autoridades se inquietam com o que lhes foi confiado para governar.
Enquanto aquele homem de camisa verde repousa no chão sua pobreza tranquila, na bolsa de valores esperanças crescem e morrem; por toda parte, investidores contam dinheiro, vendedores vendem ações, há cobradores que vão de porta em porta ao sol de junho. Uma criança está nascendo, um homem está morrendo, um automóvel come o asfalto a toda velocidade, o mundo inteiro está rolando, correndo, lutando, sofrendo, amando, odiando.
Nesta mesma hora, alguém parte, alguém chega, há um preso que aguarda julgamento, um outro que espera o inquérito, um homem que mata por ciúme, uma mulher que morre por amor, uma criança desidratada espera a morte ou a salvação, um mendigo pede a sua esmola, alguém está sendo ofendido, alguém está sendo louvado, um que manda, um que obedece, um que protesta, um que perde, um que ganha.
Debaixo da minha janela um grupo ruidoso de meninos joga uma pelada violenta – são não sei quantas vocações de Pelé, que disputam a pelota. São os mesmos que me tomaram a sesta e, não faz muito tempo, fizeram gol dentro da minha casa, a bola atravessou as traves da janela, foi bater no segundo quarto. Por um triz não acertou na minha cabeça indefesa.
Tão simples tudo. Já houve outras tardes assim, há muitos anos e eu não podia desfrutar, preso numa sala de repartição, sofrendo o calor da parede de granito, do lado do sol, escrevendo um livros imensos, ou redigindo ofícios e relatórios, às voltas com o insuportável linguagem burocrática. Já houve outras tardes assim, eu sei, noutros lugares, em muitas idades, tardes de fins d”água, tardes da minha infância sertaneja, tardes de adolescência sonhadora, tardes da juventude, inquieta, em meio à alegre espera dos festejos dos santos de junho, tardes de ontem, tardes de outrora. Ah, quantas tardes perdidas.
Não é hora de cismar, eu sei. Mas esta tarde me devolve compulsoriamente a lugares em que vivi, às tardes que não se abriram para os meus olhos como esta de hoje, porque a bruma as envolvia. Penso na viagem que não fiz, na mulher que não me quis, no filho que não foi gerado, no verso que não compus, na canção grata, na amiga morta, no amigo morto, no outro tresmalhado. Penso no amor sem começo e sem fim, na paixão que o tempo comeu e que a distancia apagou. Penso no meu cavalo de sela, pequeno, pardo, dos tempos de menino, que um dia venderam e me deram em troca um cavalo branco, malhado, grande, um horror de cavalo, desobediente, de estrada dura e galope traiçoeiro. Comércio de cigano.
São duas horas da tarde, eu disse. E a nota lírica do momento na minha praça é aquele de namorados sentado num banco, à sombra do oitizeiro, numa atitude gostosa, tão bela, tão jovem, a eterna, universal atitude dos que se amam, os olhos nos olhos, a mão do moço acariciando os cabelos pretos da menina morena. Em torno deles, o mundo não existe, nem o sol, nem o céu, nem as pessoas que passam, nem as crianças que brincam, nem o homem que dorme, nem os carros que correm, nem as dívidas, nem as dores. Há uma ternura imensa naquele beijo que daqui eu surpreendi, há uma jura de amor, de esperança, de coragem, um toque de eternidade, naquele beijo que eu vejo e nem ouço. Há uma beleza que ninguém saberá contar em verso ou em prosa, neste quadro que a minha janela emoldura – e dentro dele o amor no banco da avenida, à sombra do oitizeiro. E a paz e o sono à sombra do caminhão. A tarde tranquila parece eterna.

De Fortaleza e eu – 1976

segunda-feira, 14 de junho de 2010


Sino meu irmão

Tem sinos dobrando por nós.
Pelo que passou, pela nossa infância, pela juventude, pelo amor perdido, pelo amor não vindo, pelo pai que é morto, pela eterna noiva, pelo falso amigo, pelos que partiram sem se despedir, pelos que não voltam, pelos que se foram para o grande mundo. Pelo antigo outrora, pelas folhas, pela verde aurora que o sol, seu amante, cedo apascentou. Pelas agonias, pelos sofrimentos, pelo velho corpo e pela alma enferma que ninguém curou. Pela noite amarga, pela madrugada que a manhã levou.
Tem sinos dobrando por nós.
Té parece gente: têm voz de criança, têm voz de mulher, têm voz de ancião, têm voz de guerreiro, têm voz de cantor, têm voz de sereia, têm voz de escravo, tem voz de senhor.
Depende da hora, depende do toque, depende, também, da mão do sineiro, que é seu companheiro, que toca na corda, como um caminheiro, como o menestrel que canta pra amada seu canto de amor.
Tem sinos plangentes, tem sinos cantantes, tem sinos da boca da noite, tem sinos falantes, tem os penitentes, que são como crentes, cumprindo oração. Tem sinos pequenos, tem sinos meninos, tem sinos que crescem, viram carrilhão.
Oh sinos aéreos, voando alto, pra lá e pra cá, gritando lá em cima de abstratas torres. Os sinos vigias, oh sinos pastores, quantas são as dores do vosso cantar? Sinos que badalam, sinos que embalam, sinos que nos falam, por que sois tão maus? Por que nos lembrais que os tempos vividos são como usurários, cobrando lembranças em vãos campanários?
Por que nos feris, oh sinos perdidos de antigas igrejas, que o vento soprou, que a areia cobriu, que vos enterrou? Vos que soluçastes, vos que emudecestes, vos que padecestes, fostes sepultados sem voz de outros sinos, sem toque, sem flor, morrestes na cruz assim como a morte que sofreu Jesus. Por que nos feris com vosso silencio? Mais prefiro ouvir vossa voz que é de dor, que é a mesma voz de Nosso Senhor.
Sinos que chorais como os tristes cegos, pela mão do guia que é o sacristão. Sino que ficais vogando no espaço, como almas penadas, pedindo perdão.
Sinos que lançais vossos tristes ais pela imensidão.
Oh como parece nossa sorte, irmão. Eu também soluço cá na minha torre, mas minha voz morre, nesta solidão.
Vossa voz ouvida, vossa voz querida, vossa voz lembrada pelos que vos amam, é tão desamada, é tão esquecida, voz muito sentida, voz muito sofrida, sem repercussão, para os que não ouvem a vossa oração.
Sinos que cantais, por que não ensinais vosso canto, irmãos? Sinos professores dessas andorinhas a quem ensinais vossa compaixão – por que não mandais alunas aladas a todos os homens dar vossa lição?
Quando eu for embora, sino meu irmão, quero badaladas em tom de oração. Quero cantochão bem triste e profundo, recordando ao mundo a minha solidão.
Sino solitário, lá no campanário, sino que lançais vossos tristes ais pela imensidão!
Oh como parece, nossa sorte, meu irmão.

De Viagem ao arco-íris, 1974

sábado, 5 de junho de 2010


Confissão

Quando eu morrer, Mãe,
esquece este filho,
tão triste, tão pobre,
que só pede uma planta no túmulo.
Quando eu morrer, Mãe,
tudo o que eu peço
é uma oração crepuscular.
Quando eu morrer, Mãe,
perdoa a falsa alegria,
o riso gratuito
a alegria postiça
que escondia uma tristeza tão grande
que você, Mãe, nunca suspeitou.
Quando eu morrer, Mãe,
perdoa os erros todos deste filho
que nunca deixou de ser criança.

De Relembranças
Milton Dias

Sobre a amizade
Amizade não se impõe, não se força, não se transfere, não se delibera, tem a sua linguagem própria, até nos silêncios, nos gestos mais simples; é mais sólida do que o amor, muitas vezes baseado apenas na afeição física, que os anos podem desgastar – enquanto a amizade se aprimora, se fortifica, melhora com o tempo. É que nem o vinho”
Cartas sem resposta – 1974.

No prefácio de Relembranças, livro póstumo de Milton Dias, Jorge Amado descreve: “A casa de Milton acolhia aos sábados os amigos numerosos para o deleite da prosa bem regada e alimentada: a mesa de guloseimas de dona Iracema e de sua gentil parentela não tinha igual e os sucos incomparáveis de frutas tropicais misturavam-se aos alcoóis: os nobres vinhos da adega do professor de letras francesas e os destilados escoceses trazidos pelos visitantes.”

A casa ficava cheia a partir das onze horas. Os jornais comentavam que ali aportavam as melhores cabeças de cidade. Intelectuais, profissionais liberais, jornalistas, artistas, gente que sabia ouvir e dizer, os agradáveis de se conviver. Lembram-se desses convescotes sabatinos Regis Jucá, Pedro Henrique Saraiva Leão, Ari Ramalho, Pedro Paulo Montenegro, Lúcio Alcântara, Olga Stela, Lúcio Brasileiro, Lustosa da Costa, Doriam Sampaio, Paulo Elpídio Menezes, além de outros como Antonio Girão Barroso, Moreira Campos e Fran Martins.

Antônio Girão Barroso, parceiro de tantas jornadas, lembrava: “Miltón, como às vezes o chamávamos... quantas lembranças dele, das suas estrepolias, das suas brincadeiras, aqui, ali e acolá, na casa dos amigos e nos bares da vida, tomando uma cervejinha bem gelada, com tira-gosto e um bom papo pela noite adentro...”

E Moreira Campos declarou: “Milton sempre tinha coisas e casos a contar-nos, com graça, com efeito, com resultados imprevisíveis e, no comum, reveladores da precária condição humana, tão rica de equívocos e desencontros.”

Artur Eduardo Benevides o definia com um ente poético capaz de tornar a própria tristeza menos rude:
“Mesmo versos não tendo, és grande poeta
E resguardas, com ritmo e beleza,
A palavra gentil, que nos completa.

E chegas até nós com tal leveza
Que choramos na nota mais secreta
Em que salvas a sombra da tristeza.”

Lustosa da Costa o desenha como um donatário de largas porções de ternura para os amigos.

Sábado, estação de viver – Juarez Leitão.

“Quando (Milton Dias) morreu, na manhã de 22 de março de 1983, deixou vago o seu lugar de melhor papo das rodas palestreiras desta terra de mares tão verdes, sábados líricos e tantas coisas que contar. Seus amigos o choraram em prosa e verso e alguns ainda apontam para o céu, em noites de nuvens escassas e muito uísque, de onde ele, feito estrela, ilumina a saudade de todos. Foi assim que Olga Stela o viu, quando produziu o poema

BALADA PARA O ENCANTADO

Na Ilha do Homem Só
No barco da Capitoa
Nas velas todas do mar
Lá está ele
Encantado

Nas cores do sol poente
Em cada boca da noite
Na brisa do alvorecer
Lá está ele
Encantado

Na várzea do Sete-Estrelo
No disco da lua cheia
No bojo da madrugada
Lá está ele
Encantado

Na Viagem do Arco-Íris
Na ciranda das Cunhãs
Nas ruas de Fortaleza
Lá está ele
Encantado

No compasso da viola
Nas noites de sereneta
Em cada gole de vinho
Lá está ele
Encantado

Nos pagos do Massapê
Na neblina que esvoaça
E abraça a Bica do Ipu
Lá está ele
Encantado

Nas ondas verdes do mar
De sua terra natal,
Nas águas do rio Sena
Lá está ele
Encantado

Nas baladas do sino
No toque da Ave-Maria
Na suavidade da tarde
Lá está ele
Encantado

Embaixo do pé de jambo
Onde a relva é sempre verde
Na morada mais singela
Lá está ele
Encantado

Na saudade que não passa
Em cada instante que passa
Na memória mais constante
Continua ele
Encantado

Continuará encantado
Como a estrela que morre
E seu brilho no firmamento
Permanece
Encantando”

Do livro Sábado, estação de viver, de Juarez Leitão.



sexta-feira, 4 de junho de 2010


O jardineiro e a rosa

O homem cuidava de comprar uma coroa de flores para mandar a um amigo morto, quando uma moça esbarrou o carro à porta do jardim, entrou feito ventania, o juízo amarrado no lenço de seda colorido, interrompeu sem pedir licença a compra alheia, atraiu o jardineiro aos canteiros para escolher com ela, às pressas, um buquê “bem bonito”.

E se mandaram os dois e deixaram o freguês aí, pensando no defunto e num milhão de provisões decorrentes do seu cotidiano, que deveriam ser tomadas a tempo de alcançar o enterro. Pois bem, quando já se despedia, quando já havia aberto a bolsa gorda, a moça deu com os olhos em cima dum botão de rosa vermelho, plantado sozinho num jarro de barro, em cima do parapeito, perto do local de trabalho do jardineiro.

– Ah, sim Seu José, eu levo também este botão – e foi fazendo sinal de arrancar o galho.
Seu José acudiu a tempo, cortou-lhe o gesto:
– Não, senhora, este aí não é pra venda.
– Ah, não, Seu José, hoje eu ponho este botão no vestido, não tem conversa. Eu vinha pensando numa rosa vermelha! Este botão vai ficar lindo em cima do bege, já pensou?
– Não, senhora, este daí, não!
(Aqui então veio uma famosa frase, filha de dinheiro):
– Peça quanto quiser...
– Não, Dona Menina, eu não vendo por dinheiro nenhum. Este daí é só pra eu olhar.
A moça ainda tentou uma ameaça:
– Pois eu não compro mais nada aqui, se o senhor não vender.
– Pra mim tanto faz. Eu também tenho direito ao meu capricho. Ainda estou achando que tenho é pouco tempo para olhar. Nem a mulher do Presidente levava este botão daqui. E encerrou a questão.

Seu José, afeito ao duro labor diário de amanhar o chão, acostumado a engravidar batatas de dálias e de angélica, semente de cecílias e de acácias no ventre da terra, parindo dezenas de rosas auxiliadas pelo trabalho de suas mãos grosseiras, vendendo-as depois tão caro, Seu José, de olhar duro, pouco riso e expressão rude, carregando um coração solteiro de homem maduro, tomou-se de súbita e grave paixão por aquele botão de rosa vermelho, encheu-se de ternura paterna, sentiu correr-lhe no peito estremecimentos de amante, quis protegê-lo como quem protege as crianças, as mulheres e os fracos, sentiu que a rosa em botão, sanguinea, solitária, só tinha por si alguns tristes espinhos contra a agressão do mundo.

Seu José sabe que as rosas têm suas horas de vida contadas, sabe que as rosas, assim como as pessoas, nunca são iguais, ainda que nasçam no mesmo pé, ainda que sejam gêmeas. Ele observou, sentiu, aprendeu. E naquela linguagem em que devem falar os jardinheiros e as rosas, no mesmo tom em que se reza, em que se tocam baladas de amor em serenata, em que se cantam canções de ninar, em que se dizem ternos poemas apaixonados, nessa linguagem de pureza que há de ser a mesma em que falam os pastores às estrelas e as estrelas aos poetas, nesse estranho diálogo que nós outros não podemos ouvir nem entender, o Jardineiro e a Rosa hão de ter feito graves, amargas censuras à incompreensão dos que lhes desconhecem os mistérios.

E a rosa-em-botão há de ter repetido ao Seu José, pai, enfermeiro, amigo, amante, irmão das flores, o que outra disse um dia ao Pequeno Princíoe: “Tu és eternamente responsável por tudo o que cativas”...

De A ilha do homem só.
Clube da segunda-feira

Ô amigos, alegrai-vos, rejubilai-vos amigos, vós todos que sofreis o impacto da segunda-feira, o cansaço físico e a ressaca moral das inconseqüências e fraquezas, vós que, frequentemente, no principio da semana, estais à beira do suicídio, incapazes de entrar nos trilhos, de raciocinar, de agir, de vender vossa mercadoria, redigir vossas razões, fazer vosso laudo médico, escrever o que for da vossa obriga.
Assim foi o falar de um amigo: quando o domingo último iniciava sua fuga, um certo senhor, que se encontrava entre camaradas, começou a sofrer por antecipação o desespero da segunda-feira, com seu bornal de arrependimento e de remorsos, determinando uma espécie de espontânea auto-acusação e conseqüente prestação de contas.
Surgiu então a idéia salvadora de fundar o Clube da 2ª Feira.
Surgiu a idéia justamente quando um deles contava seu calendário semanal, confessava que na segunda-feira lhe ataca uma terrível vontade de morrer. Na terça-feira o infeliz sofre uma crise mística, com vontade de entrar num convento, numa forma de recurso escapista, como quem procura refugiar-se num lugar tranqüilo, à espera da morte. Na quarta, vem o demônio da vontade de casar. Na quinta, o pobre deseja viajar, passa o dia sonhando com outras terras, somando lembranças estranhas, repetindo memórias de passos internacionais e andanças várias. Sexta-feira, diz ele que é dia neutro, não lhe vem desejo de morrer, nem de entrar no convento, nem de casar, nem de viajar. É o mais humano, o mais equilibrado, o mais generoso dos dias. E no sábado, como é de prever, sopra-lhe no peito uma aura de juventude no corpo e na alma de toda a humanidade, por uma sábia imposição da vida. Depois vem o domingo, com suas festas e alegrias, para na segunda-feira voltar àquela vontade de morrer.
Pois o Clube se propõe a uma piedosa ajuda, uma sorte de operação-salvamento. Chega o freguês na segunda-feira e já encontra outros náufragos com o rosto igualmente amassado, o riso perdido, o olhar buscando apoio, ânimo, perdão. Desgraça de muito consolo é: então vai a criatura de Deus se acomodando, feito quem se acomoda ao balanço do bonde e quando menos se espera, estarão todos festivos, cordiais, fraternos, como num sábado artificial.
E provavelmente à beira dum copo de uísque recuperador e perdonte, os que traziam o coração enfermo, a alma triste, o corpo cansado, o olhar morto, o riso apagado, e a medonha vontade de morrer, se encontrarão de repente reconstituídos, farão as pazes com a humanidade, com o mundo, com a vida especialmente, numa ciranda de compreensão e de paz, como merecem, cá na terra, os homens de boa vontade.
Sei bem que haverá de um tudo – e se acaso tendes preconceitos raciais, barreiras de discriminação social, ficai curtindo a segunda-feira em casa, na solidão do vosso quarto ou no vosso escritório. Se, alem de não terdes cumprido o dever da missa dominical, tombastes noutros erros, clamai a Deus perdão do profundo abismo em que vos achais, preparei-vos, abastecei-vos de medo. Felizmente o Clube da 2ª Feira não abrirá as portas somente para os virtuosos, pois estes, a bem dizer, não precisam, virão apenas animados pelo desejo de colaboração. Haverá muitos pecadores, muitas pecadoras haverá e alguns virtuosos. Algumas pessoas que não se consideram nem pecadoras nem virtuosas já pediram entrada. É possível que haja santos, porque “os santos descem ao inferno” informa Monsieur Cesbron.
Se o freguês quiser chorar, como era de bom tom no famoso Muro das lamentações, pode abrir a boca, feito versão atual de Jeremias – haverá um muro apropriado, chorai, chorai: ninguém vos interpretará mal o pranto copioso, talvez alguns até façam côro. Se quiserdes cantar, cantai, ó alegres almas da segunda-feira, cantai bendito ou valsa velha, samba ou bossa nova, cantai. Se quiserdes esfregar a cara no chão, como os maometanos, ficai à vontade, é muito salutar juntar-se um momento ao pó em que um dia se há de tornar.
Haverá uma provisão de remédio para o fígado, musica muito incomodativa, um clima psicoterápico muito propicio. Falar nisto, se quiserdes vos entregar à morte provisória, dormi – haverá meio de vos proporcionar bons sonhos – é o recurso da famosa sonoterapia. E se quiserdes orar, num sincero pedido de perdão pelos vossos pecados e pelos pecados alheios cometidos no sábado e no domingo, orai, Deus acode. Para vós, que amais a oração, haverá livros próprios, salmos e indicação especial para promover as pazes de cada cristão com seu santo particular. Livros de poesias, livros que ensinam otimismo e alegria de viver, livros que consolam, livros que animam, haverá um contador de estórias especialmente contratado para quem aprecia este gênero de entretenimento. E como se trata de fabricar um sábado no principio da semana, haverá um inevitável violão.
Haverá muito mais, só vendo. Alegrai-vos. E preparai-vos para uma nova segunda-feira nada sombria, muito feliz, dentro do melhor espírito comunitário.
De A ilha do homem só.


As três soluções

Os amigos, que eram três, cansados da inútil busca, aportaram num bar vazio, silencioso, e de repente, derramaram a sua confissão de solitários perdidos nos caminhos da noite e concluíram, quase sem preâmbulo, que nem a presença mútua, nem a solidariedade, nem a bebida, nem as mulheres, nem os amigos, nem as sombras, nem as músicas numerosas que colheram por onde passaram, nem os versos que invocaram, nem as alegres lembranças povoavam a sua solidão.
E consumiram o tema com maior avidez do que a bebida e gastaram a experiência longamente acumulada, usaram maduras reflexões que tinham, no principio, um travo de queixa discreta, revelando traiçoeiramente por algumas poucas idéias soltas sem censura.
Depois, por volta da madrugada, quando já tinham gasto muitas palavras (claro que citaram Shakespeare: “words, words, words”), a luz se fez por acaso e descobriram que todos sofriam de desespero congênito para a convivência humana. E porque assim entenderam o destino, o mais lúcido, o óbvio era aceitar, cumprir e fecundar a solidão. Sem violentar a natureza, seguindo o exemplo de todos os que tinham sabido arrancar do seu estado de sós, as forças para enriquecer o patrimônio cultural da humanidade.
E não entenderam a condenação bíblica que está no Eclesiastes “Vae Soli!” e buscaram no mundo confirmação para a tese da validade, até da necessidade da solidão, responsável pela grande contribuição que tem dado ao mundo, que vem dos que, sozinhos, no seu laboratório, se debruçam sobre provetas e descobrem remédios para os males; dos que, sozinhos no seu gabinete, queimam os olhos nos livros e nos seus escritos, os que exercitam as mãos e a mente e a alma no mistério da criação.
Sozinhos estiveram frequentemente Buda e Cristo, sozinho andou São João Batista pelo deserto, sozinhos estiveram Santo Antonio e São Francisco, para citar só estes; sozinhos estiveram Tereza d’Avila e Tereza do Menino Jesus e muitas outras monjas que tiraram da solidão a santidade.
E voltaram ao tema inicial com a insistência e a repetição do Bolero de Ravel e encontraram que a solidão não decorre propriamente da ausência da companhia – e para ilustrar, lembraram a idéia do escritor italiano que define o chato como aquele que nos rouba a solidão sem nos fazer companhia. O que, traduzindo para a nossa língua dá que mais vale só do que mal acompanhado.
Vai ver é mesmo. Entro aqui com a minha opinião muitas vezes verbalmente defendida, discernindo três marcas de solidão.
A primeira, a mais terrível é a que se cumpre a dois, é a melancolia de viver juntos sem diálogo, morar juntos, comer juntos, dormir juntos, acordar juntos, e não ter mais amor, nem amizade, nem palavras – ou, como diz a cantiga brasileira: não ter mais vontade de brigar! – e continua convivendo por conveniência, por falta de iniciativa, por preguiça, por prudência, por circunstancia, por covardia, vivendo literalmente os versos do nosso poeta: “A vida inteira que podia ter sido e não foi”.
A outra, a segunda, a que já todo mundo há de ter experimentado pelo menos uma vez na vida – é aquela de se encontrar só, no meio da multidão, ilhado de gente por todos os lados e continuar só, não ter com quem dividir a alegria nem a tristeza, não ter com quem comentar as coisas mais simples, o tempo, a natureza, o filme ou a peça de teatro que se acabou de ver, o quadro que se admirou, o livro que se leu, a dor que se sofre, a saudade que se cumpre, a esperança que se acalenta, não ter a quem dizer que se está só, não ter a quem pedir esmolas dum olhar, dum riso, duma palavra.
A outra, a terceira, é a fecundante, aquela que se deve exercer com sabedoria, a que ensina a refletir, a usar a cabeça e as emoções em favor próprio ou alheio, a doce solidão intocada, a solidão propriamente dita, física, moral, espiritual, professora dos sábios e dos santos, a companheira dos filósofos, inspiradora dos poetas, a mestra dos profetas, a mãe dos gênios, a respeitável Senhora Solidão. Que pode ser má quando é imposta e repudiada e pode trazer grandeza quando é solicitada, cultivada, desejada, amada. A bendita solidão dos que sabem ser sós.

De Relembranças

terça-feira, 25 de maio de 2010

OS MENINOS DE IRACEMA

Sei que nasci no Ipu- não que me lembre (já faz muito tempo), mas por informação. De mim mesmo, só recordo Santana do Acaraú e Massapê, onde fui menino. Como todas as pessoas nascidas antes dos processos de inseminação artificial, sou filho natural, mas legítimo, com papeis passados no cartório e na igreja. Meu pai acumulava as funções de boticário, dono de armazém de secos e molhados, enfermeiro e às vezes médico à força. Só há pouco tempo, num papel amarelo assinado pelo finado preside Justiniano de Serpa, descobri que, eventualmente, funcionava também como juiz substituto.
Chamava-se Pedro Dias Ximenes, morreu de repente, aos 35 anos e os filhos herdaram tão pouca coisa que até o sobrenome Ximenes não passou para nós, talvez por medida de economia. Ficamos com o Dias.
Minha mãe, Dona Iracema, é filha de um Coronel da Guarda Nacional, o coronel João Batista de Araújo Vasconcelos, maravilha muito falada, muito discutida e muito invejada, inclusive por mim. Desse avô gostaria de herdar a fada (uma farda azul, com alamares, dragonas e botões dourados, boné tipo exército francês, luvas de pelica branca, espada e tudo) a qual farda fez sempre muito sucesso nos dias de gala no interior. Nas procissões, principalmente. Gostaria de herdar também sua fibra: aos 68 anos contraiu segundo matrimônio com uma moça de 18 anos e desse consórcio houveram onze filhos, como se diz em boa linguagem tabelião. Ao todo são vinte e um.
Quanto ao resto, fiz o que fizeram todos os brasileiros classe-média. Curso primário com professora no interior, que tinha ordem de minha mãe para infligir qualquer castigo, menos pancada. Era, para os outros meninos e para a mestra mesma, uma exceção odiosa, na vigência da palmatória. Não ouso dizer que fosse uma criança sossegada. Meu pecado maior, além de sonso e preguiçoso, era rir das pernas das professoras. Neste ponto eu tive má sorte: só peguei uma de pernas grossas. As mestras se vingavam com muita imaginação. Uma delas me amarrava o caderno de dever às costas e me punha de pé na porta da rua, exposto à execração pública. Outra apreciava me ver de joelhos. Eu castigava nos nomes feios (da boca pra dentro) e malsinava aquela proibição da palmatória. Tirante isto e a mania de falarem mal de mim para a minha mãe eram boas pessoas, muito devotadas ao ensino. Depois que tudo passou, fizemos encontro de contas, ficamos amigos.
Fiz exame de admissão no Colégio Castelo Branco, onde fui interno. Foi aí que me dei com Dona Carlota Joaquina (ainda não sabia que era uma peça tão ordinária), com Dom João VI e o nosso traquinas Pedro I. Gostei de quase todos, mas apreciava particularmente a Paraguaçu (talvez por causa daquele adjetivo “formosa” acompanhando sempre o seu nome) e a Marquesa de Santos. Nunca perdoei os que fizeram a guerra do Paraguai: eram três capítulos muito longos para prender de cor. Sempre achei que devia ter sido evitada, com tanto “voluntário” seguindo armado.
Depois da primeira série, com notas de matemática um pouco desonrosas, ( ainda hoje responsabilizo aquela remota álgebra pela queda do meu cabelo) me mandaram para o Colégio Cearense. Nesse tempo passei a externo, morava na casa do tio Deusdédit, um tio-doutor, irmão mais velho de minha mãe. Esse tio me ensinou muita coisa, a mim e aos meus irmãos. Devo-lhe tanto e ainda lhe devo todo o Eça, que fui roubando à prestação, da sua estante e lendo escondido, aí por volta dos doze anos.
Falando em irmão, tenho quatro. A gente era “os meninos da Iracema”, em Massapê. Me lembro que no final das novenas, as moças do côro cantavam na igreja um hino bonito, pedindo proteção para a terra de Alencar e pedindo alegria, paz, saúde, fortuna, felicidade para “os filhos de Iracema”, uma evidente alusão aos cearenses. Um dia, dona Mimosa protestou junto ao padre: – por que não pediam as mesmas graças para os filhos de Mimosa?
A família achava que filho criado sem pai não dá para nada, aí aquela dita dona Iracema, de medo que a praga pegasse, nunca perdoou nada aos meninos: a punição comia por qualquer dá-cá-esta-palha. Quem sabe, foi talvez por isto que todos chegaram ao fim do curso universitário: um deles é dentista, outro é doutor médico, o mais novo é engenheiro. Minha irmã se diplomou em casamento. Stela, Wilson, Miron, Batista. “Tutti buona gente”. Eu fiquei mesmo bacharel.
Voltando à dona Iracema, devo esclarecer que é pessoa inteligente, com muito senso de humor e bastante faro para o anedótico. Tem um talento especial para descobrir o traço caricatural das pessoas com quem conversa. Tenho pena porque deixou de ir ao mercado diariamente. Era muito bom, naquele tempo: podia voltar sem carne, mas não voltava sem uma estória engraçada, como a daquela moça que estava encalhada, encalhada, não achava casamento. Foi só se diplomar em datilografia, no mesmo mês ficou noiva.
Que é que querem saber ainda? Ah, sim– nunca levei mulher nenhuma aos pés do padre. Tenho levado a outros lugares. Somente uma vez estive gravemente noivo, mas escapei, para surpresa geral e minha em particular. Não me acuso de nenhum filho.
O resto vocês todos já sabem, isto que a gente faz, que a gente vive, que a gente ama e sofre, dinheiros pequenos pela porta da rua, por caminhos vagarosos, a luta por um lugar à sombra, a família para a gente ajudar, os ganhos poucos, trabalho de professor, trabalho de burocrata, trabalho em redação de jornal. Passei ponte, passei rio, andei pelo mundo, naveguei, penei, amei, desamei. Faturei alegria, loteei tristeza, fui mais desamado do que amado. Somando tudo, esta estória tão grande para contar– o triunfo da sobrevivência, que já não é pouca coisa.
E se vão pensar que vou terminar sem falar de nenhuma gloria, estão muito enganados. Eu lhes conto a do meu prêmio literário, que me comoveu tanto: um senhor leu minha crônica sobre caminhão, me telefonou, ofereceu um prêmio– uma passagem de graça na boléia do seu “Chevrolet”, daqui até São Paulo, ida-e-volta. Que só pagaria mesmo, disse ele, a comida que comesse e a pousada para dormir.

De A ilha do homem só
SOCORRO

Socorro veio do sertão de ponto feito para o emprego– e saiu melhor do que a encomenda: falante, cantante, fumante, desconfia-se que também amante das suas bicadas pelos caminhos da noite, que ela freqüenta oculta e prudentemente. Em conversa, faz praça da sua honestidade irrepreensível de donzela virgem, pura, invoca princípios e ensinamentos maternos, defende a honra com muita convicção e já decidiu que homem na sua vida só entra pela porta do matrimônio no padre e no juiz. Mas isto são falas a que não se pode dar muita valia, pois uma amigota, companheira de andanças aventurosas, já denunciou caso seu com homem desquitado. Depois, foram ver, o homem nem separado era, estava muito bem com a sua legitima esposa e com a prole numerosa para os tempos dagora– pois são seis ao todo. Deu até queixa na policia, depois de discussão acesa.
Tudo isto Socorro esconde– e quando aparece na boca da cena em figura doméstica, assume o tranqüilo ar de bem comportada, lembra sua devoção ao Padre Cícero, que lhe resolveu muitas dificuldades, obrando milagres que vai contando de maneira minuciosa no seu falar pitoresco.
Pois esta dita Socorro abandonou seu lugar de doméstica e foi trabalhar de balconista em casa comercial, com um senhor tão seu conhecido, que ela trata simplesmente pelo prenome, agravado com o diminutivo: – É Pedrinho pra lá, Pedrinho prá cá. Quando a ex-patroa, no momento exato que a Socorro se demitia, estranhou que tratasse o patrão com tanta intimidade, ela se explicou triunfante:
– Ora, eu conheço o Pedrinho há muito tempo. Foi até ele quem matou meu pai...
Estarrecida, a senhora não deixou de lhe manifestar seu óbvio espanto e lhe pedir explicação da sua ausência de escrúpulo, passando a trabalhar com o homem que lhe matara o pai. E, justamente curiosa, indagou direta: – Matou de quê, de faca ou de tiro?
– Ah, não senhora. Matou de feitiço. Não vê que meu pai era candidato a vereador, ele ameaçou na campanha, que havera de mandar fazer um feitiço para ele não se eleger. Dito e feito. O pai adoeceu, foi minguando, foi se devorando na febre, quando ele já andava nas últimas, nós mandamos buscar uma macumbeira nas praias– ali pelas areias do Acaraú. A mulher foi, coitada, mas ela mesma disse que já chegava tarde, nem pôde fazer mais nada.
Fosse um dia antes, ainda tinha dado jeito– mas naquela hora, o feitiço já estava muito entranhado. O mais que podia adiantar era um trabalho pro pai não ir pro inferno.
Quando lhe indagaram por quanto sairia o “trabalho”, a mulher até se ofendeu. Que dinheiro não passava pelas suas mãos, que não havia de cobrar pelas forças que Deus lhe dera. Só precisa do material, que era pouca coisa: uma cabra preta, um saco de farinha, um saco de goma e um saco de feijão. Sim que não era pra consumo, era destinado mesmo ao seu mistério de invocação e de comunicação direta para garantir salvar o infeliz das penas eternas.
Cabra tinha sim, mas não era da preta. Aí um filho do moribundo se atacou pelas propriedades da vizinhança, já levando uma malhada, para negociar a troca. Ah, meu Deus, o que ele andou por aquelas beiras de estradas batendo de casa em casa à procura duma cabra no modelo exigido. Só voltou no dia seguinte, quando o pai já tinha entregue a alma a Deus. Felizmente a mulher garantiu que já tinha começado as preces, que de volta prá casa era só tratar de executar o trabalho propriamente dito. E lá se foi de volta aos seus pagos, com a cabra preta, a goma, a farinha e o feijão. Ah, sim, tinha também um quilo de sal nos implementos.
Passou-se muito tempo, sem que o finado desse notícia, nem ele, nem a feiticeira, nem a cabra, nem nada. Enquanto isto, a família sofria a incerteza, tinha medo de que o infeliz, além de sucumbir ao feitiço, estivesse queimando no fogo do inferno. Então a dita Socorro recebeu uma carta da mãe, contando sonhos horríveis com o marido, pedindo ajuda e adiantando que uma vizinha o tinha visto soltando um fogo roxo pela boca. E a macumbeira, por sua vez, tinha desaparecido completamente. Como dizem lá: abriu-se o chão e não encontraram mais a mulher.
Foi aí que a Socorro, expedita e oportuna, lembrou-se de recorrer à sabença dum pai-de-santo prestigioso, aqui mesmo em Fortaleza– um homem de muita convivência com as forças do Alto, que também acudira a sua amiga nas trevas duma paixão desencontrada e atacada por malefícios que lhe fora feito em terras do maranhão, por uma Ph.D no assunto.
Sabem o que foi que o homem disse? Que só podia garantir o trabalho se lhe mandassem uma cabra.
Da preta!

De As outras cunhãs.

sexta-feira, 14 de maio de 2010



NASCIMENTO, VIDA, PAIXÃO E MORTE DA NOITE

O sino badalou as seis horas como um dobre de finado pelo sol que agonizava, correu um murmúrio de prece no mundo, acenderam-se velas e pouco depois, banhado em sangue, o mesmo sol morreu afogado no mar, como convinha.
Foi nesta hora neutra que a noite desceu, indecisa e pálida, mas cresceu de repente, ganhou corpo, cobriu-se com um vestidinho preto e o estendeu por igual de alto a baixo, em cima da cidade. Pôs cadeiras nas calçadas, apagou o fogo das cozinhas, acendeu a luz, trouxe crianças para a rua e fez cirandas com elas, cantou cantigas de roda, chamou pretas velhas para os batentes das portas, as quais pretas permutaram estórias, cachimbaram, cochilaram, trocaram lembranças antigas de outras noites irmãs.
E porque a Noite era uma menina ingênua, rezava ainda, guardava no ouvido o toque recente das Ave-Marias, promovia na terra uma atmosfera de sinceridade e de pureza. Logo depois fecharam as igrejas.
A Noite então ficou adolescente, visitou hospitais, adormeceu doentes, acalmou loucos, cessou tosses, calou soluços, apagou prantos, entrou nas casas, embalou crianças, recolheu todos os velhos e os fez dormir tropeçando em cochilos, com sonhos raros, sono leve mas constante. Baixou as pálpebras das aves e dos pássaros, deitou tranqüilamente os justos, ninou os santos, os bem-aventurados, os que rezam cedo e dormem cedo.
Passou-se o tempo, a Noite ficou moça, juntou gente nas avenidas, promoveu festinhas, abriu cinemas e teatros, entrelaçou as mãos dos namorados, fez quermesses em suburbanos pátios de igreja, correu às matas, juntou-se ao vento, assobiou nos cipós, deitou sombra, insinuou encontros e os animais atenderam ao estranho apelo.
Foi a essa altura que começaram as serenatas, a Noite ficou romântica, chamando amor, juntando violeiros, cantadores, jograis e poetas, inspirou baladas e madrigais e velhas cantigas foram cantadas debaixo das sacadas de janelas, com trêmulos de voz saindo de jovens peitos apaixonados.
Seduzida pelo mistério, atraída pelo desconhecido, a Noite vedeta vestiu-se de negro violento, enfeitou-se de estrela, escureceu caminhos e ruas e montes e mares, uniu amantes, alcovitou, assistiu a macumbas em terreiros Xangô, ganhou o rumo do mar, explorou beiras de praia. Por volta das doze horas, tinha entrado em todos os bares, ficou alta, perdeu-se.
Foi aí que começou sua vida airada, alegre quadra, embuçou-se, abriu cassino, buate, cabaré, gafieira, chamou músicos, povoou as ruas de gente barulhenta, enterrou tristezas, conheceu todos os vícios, embriagou-se, foi cantada, louvada, amada, desejada, foi possuída por ladrões e grão-senhores, acomodou no seio imenso todos os boêmios, provocou adultérios, enfrentou perigos, abrigou mulheres de má vida, viu correr sangue, viu rosas e gente nascendo, ela mesma abriu porta de cadeia e de prostíbulo. Ficou grávida de mistérios, testemunhou traições e lealdades e todos os notívagos, seus filhos, ainda no ventre aconchegante, confraternizaram. Eram todos alegres irmãos.
Depois a Noite foi esfriando, foi decaindo, foi envelhecendo, foi perdendo a cor, os amantes, os amigos, perdeu o nome, virou madrugada e assim, sonolenta, frágil, abandonada por quase todos (só alguns poucos filhos fieis lhe assistiram os momentos finais), sem música, sem canto, quase sem voz, estertorou, morreu, espalhou restos na terra, no ar, no mar. Malsinada pelos filhos infiéis: pelos guardas noturnos, enfermeiros de plantão, vigias, por todos os que trabalham enquanto outros gozam, repousam ou se divertem. “In extremis” ouviu ainda o galo, ansioso e bajulador, que saudava o sol nascente: a Rainha morreu, viva o Rei.
E aqueles todos que tinham amado a noite-menina, os que amaram de amor puro, as crianças, os velhos, os enfermos, foram os primeiros que acordaram e, esquecidos dela, saudaram também o sol e bendisseram novo dia.

De A ilha do homem só.