SEMPRE MILTON DIAS

José Milton de Vasconcelos Dias (*29-04 1919 - Ipu - CE; +22-03 1983 - Fortaleza - CE ).

Após iniciar os estudos na cidade de sua infância, Massapê, vem para o Colégio Castelo Branco em regime de internato.

A experiência da infância em meio à paisagem sertaneja, seus mitos e ritos, lendas e cantorias, foi fundamental para a formação de sua sensibilidade criadora, uma vez que despertaria, no futuro cronista, a inclinação para o lirismo, o poético.

No Colégio Marista Cearense, onde realizou os estudos secundários, descobriu, em definitivo, a vocação da escritura. Sendo fundador dos jornais ´O Ideal´; e ´Alvorada´.

Em Paris, cursou os Estudos Superiores Modernos de Língua Francesa e Literatura Francesa.

O Governo francês o condecorou com a Ordem das Palmas Acadêmicas.

Foi professor de Língua e Literatura Francesa no Curso de Letras da UFC.

Bacharel em direito (1943), Letras (1966), professor secundário no CE e SP, tradutor, diplomado em letras neolatinas. Cursou Faculdade de filosofia. Técnico educação UFCE, secretário UFCE, contista, cronista, ensaísta, orador, jornalista, fundador e membro do Grupo Clã-movimento renovador das letras cearenses. Membro da Academia Cearense de Letras- cadeira nº 4- e Associação Cearense da Imprensa.


terça-feira, 25 de maio de 2010

OS MENINOS DE IRACEMA

Sei que nasci no Ipu- não que me lembre (já faz muito tempo), mas por informação. De mim mesmo, só recordo Santana do Acaraú e Massapê, onde fui menino. Como todas as pessoas nascidas antes dos processos de inseminação artificial, sou filho natural, mas legítimo, com papeis passados no cartório e na igreja. Meu pai acumulava as funções de boticário, dono de armazém de secos e molhados, enfermeiro e às vezes médico à força. Só há pouco tempo, num papel amarelo assinado pelo finado preside Justiniano de Serpa, descobri que, eventualmente, funcionava também como juiz substituto.
Chamava-se Pedro Dias Ximenes, morreu de repente, aos 35 anos e os filhos herdaram tão pouca coisa que até o sobrenome Ximenes não passou para nós, talvez por medida de economia. Ficamos com o Dias.
Minha mãe, Dona Iracema, é filha de um Coronel da Guarda Nacional, o coronel João Batista de Araújo Vasconcelos, maravilha muito falada, muito discutida e muito invejada, inclusive por mim. Desse avô gostaria de herdar a fada (uma farda azul, com alamares, dragonas e botões dourados, boné tipo exército francês, luvas de pelica branca, espada e tudo) a qual farda fez sempre muito sucesso nos dias de gala no interior. Nas procissões, principalmente. Gostaria de herdar também sua fibra: aos 68 anos contraiu segundo matrimônio com uma moça de 18 anos e desse consórcio houveram onze filhos, como se diz em boa linguagem tabelião. Ao todo são vinte e um.
Quanto ao resto, fiz o que fizeram todos os brasileiros classe-média. Curso primário com professora no interior, que tinha ordem de minha mãe para infligir qualquer castigo, menos pancada. Era, para os outros meninos e para a mestra mesma, uma exceção odiosa, na vigência da palmatória. Não ouso dizer que fosse uma criança sossegada. Meu pecado maior, além de sonso e preguiçoso, era rir das pernas das professoras. Neste ponto eu tive má sorte: só peguei uma de pernas grossas. As mestras se vingavam com muita imaginação. Uma delas me amarrava o caderno de dever às costas e me punha de pé na porta da rua, exposto à execração pública. Outra apreciava me ver de joelhos. Eu castigava nos nomes feios (da boca pra dentro) e malsinava aquela proibição da palmatória. Tirante isto e a mania de falarem mal de mim para a minha mãe eram boas pessoas, muito devotadas ao ensino. Depois que tudo passou, fizemos encontro de contas, ficamos amigos.
Fiz exame de admissão no Colégio Castelo Branco, onde fui interno. Foi aí que me dei com Dona Carlota Joaquina (ainda não sabia que era uma peça tão ordinária), com Dom João VI e o nosso traquinas Pedro I. Gostei de quase todos, mas apreciava particularmente a Paraguaçu (talvez por causa daquele adjetivo “formosa” acompanhando sempre o seu nome) e a Marquesa de Santos. Nunca perdoei os que fizeram a guerra do Paraguai: eram três capítulos muito longos para prender de cor. Sempre achei que devia ter sido evitada, com tanto “voluntário” seguindo armado.
Depois da primeira série, com notas de matemática um pouco desonrosas, ( ainda hoje responsabilizo aquela remota álgebra pela queda do meu cabelo) me mandaram para o Colégio Cearense. Nesse tempo passei a externo, morava na casa do tio Deusdédit, um tio-doutor, irmão mais velho de minha mãe. Esse tio me ensinou muita coisa, a mim e aos meus irmãos. Devo-lhe tanto e ainda lhe devo todo o Eça, que fui roubando à prestação, da sua estante e lendo escondido, aí por volta dos doze anos.
Falando em irmão, tenho quatro. A gente era “os meninos da Iracema”, em Massapê. Me lembro que no final das novenas, as moças do côro cantavam na igreja um hino bonito, pedindo proteção para a terra de Alencar e pedindo alegria, paz, saúde, fortuna, felicidade para “os filhos de Iracema”, uma evidente alusão aos cearenses. Um dia, dona Mimosa protestou junto ao padre: – por que não pediam as mesmas graças para os filhos de Mimosa?
A família achava que filho criado sem pai não dá para nada, aí aquela dita dona Iracema, de medo que a praga pegasse, nunca perdoou nada aos meninos: a punição comia por qualquer dá-cá-esta-palha. Quem sabe, foi talvez por isto que todos chegaram ao fim do curso universitário: um deles é dentista, outro é doutor médico, o mais novo é engenheiro. Minha irmã se diplomou em casamento. Stela, Wilson, Miron, Batista. “Tutti buona gente”. Eu fiquei mesmo bacharel.
Voltando à dona Iracema, devo esclarecer que é pessoa inteligente, com muito senso de humor e bastante faro para o anedótico. Tem um talento especial para descobrir o traço caricatural das pessoas com quem conversa. Tenho pena porque deixou de ir ao mercado diariamente. Era muito bom, naquele tempo: podia voltar sem carne, mas não voltava sem uma estória engraçada, como a daquela moça que estava encalhada, encalhada, não achava casamento. Foi só se diplomar em datilografia, no mesmo mês ficou noiva.
Que é que querem saber ainda? Ah, sim– nunca levei mulher nenhuma aos pés do padre. Tenho levado a outros lugares. Somente uma vez estive gravemente noivo, mas escapei, para surpresa geral e minha em particular. Não me acuso de nenhum filho.
O resto vocês todos já sabem, isto que a gente faz, que a gente vive, que a gente ama e sofre, dinheiros pequenos pela porta da rua, por caminhos vagarosos, a luta por um lugar à sombra, a família para a gente ajudar, os ganhos poucos, trabalho de professor, trabalho de burocrata, trabalho em redação de jornal. Passei ponte, passei rio, andei pelo mundo, naveguei, penei, amei, desamei. Faturei alegria, loteei tristeza, fui mais desamado do que amado. Somando tudo, esta estória tão grande para contar– o triunfo da sobrevivência, que já não é pouca coisa.
E se vão pensar que vou terminar sem falar de nenhuma gloria, estão muito enganados. Eu lhes conto a do meu prêmio literário, que me comoveu tanto: um senhor leu minha crônica sobre caminhão, me telefonou, ofereceu um prêmio– uma passagem de graça na boléia do seu “Chevrolet”, daqui até São Paulo, ida-e-volta. Que só pagaria mesmo, disse ele, a comida que comesse e a pousada para dormir.

De A ilha do homem só
SOCORRO

Socorro veio do sertão de ponto feito para o emprego– e saiu melhor do que a encomenda: falante, cantante, fumante, desconfia-se que também amante das suas bicadas pelos caminhos da noite, que ela freqüenta oculta e prudentemente. Em conversa, faz praça da sua honestidade irrepreensível de donzela virgem, pura, invoca princípios e ensinamentos maternos, defende a honra com muita convicção e já decidiu que homem na sua vida só entra pela porta do matrimônio no padre e no juiz. Mas isto são falas a que não se pode dar muita valia, pois uma amigota, companheira de andanças aventurosas, já denunciou caso seu com homem desquitado. Depois, foram ver, o homem nem separado era, estava muito bem com a sua legitima esposa e com a prole numerosa para os tempos dagora– pois são seis ao todo. Deu até queixa na policia, depois de discussão acesa.
Tudo isto Socorro esconde– e quando aparece na boca da cena em figura doméstica, assume o tranqüilo ar de bem comportada, lembra sua devoção ao Padre Cícero, que lhe resolveu muitas dificuldades, obrando milagres que vai contando de maneira minuciosa no seu falar pitoresco.
Pois esta dita Socorro abandonou seu lugar de doméstica e foi trabalhar de balconista em casa comercial, com um senhor tão seu conhecido, que ela trata simplesmente pelo prenome, agravado com o diminutivo: – É Pedrinho pra lá, Pedrinho prá cá. Quando a ex-patroa, no momento exato que a Socorro se demitia, estranhou que tratasse o patrão com tanta intimidade, ela se explicou triunfante:
– Ora, eu conheço o Pedrinho há muito tempo. Foi até ele quem matou meu pai...
Estarrecida, a senhora não deixou de lhe manifestar seu óbvio espanto e lhe pedir explicação da sua ausência de escrúpulo, passando a trabalhar com o homem que lhe matara o pai. E, justamente curiosa, indagou direta: – Matou de quê, de faca ou de tiro?
– Ah, não senhora. Matou de feitiço. Não vê que meu pai era candidato a vereador, ele ameaçou na campanha, que havera de mandar fazer um feitiço para ele não se eleger. Dito e feito. O pai adoeceu, foi minguando, foi se devorando na febre, quando ele já andava nas últimas, nós mandamos buscar uma macumbeira nas praias– ali pelas areias do Acaraú. A mulher foi, coitada, mas ela mesma disse que já chegava tarde, nem pôde fazer mais nada.
Fosse um dia antes, ainda tinha dado jeito– mas naquela hora, o feitiço já estava muito entranhado. O mais que podia adiantar era um trabalho pro pai não ir pro inferno.
Quando lhe indagaram por quanto sairia o “trabalho”, a mulher até se ofendeu. Que dinheiro não passava pelas suas mãos, que não havia de cobrar pelas forças que Deus lhe dera. Só precisa do material, que era pouca coisa: uma cabra preta, um saco de farinha, um saco de goma e um saco de feijão. Sim que não era pra consumo, era destinado mesmo ao seu mistério de invocação e de comunicação direta para garantir salvar o infeliz das penas eternas.
Cabra tinha sim, mas não era da preta. Aí um filho do moribundo se atacou pelas propriedades da vizinhança, já levando uma malhada, para negociar a troca. Ah, meu Deus, o que ele andou por aquelas beiras de estradas batendo de casa em casa à procura duma cabra no modelo exigido. Só voltou no dia seguinte, quando o pai já tinha entregue a alma a Deus. Felizmente a mulher garantiu que já tinha começado as preces, que de volta prá casa era só tratar de executar o trabalho propriamente dito. E lá se foi de volta aos seus pagos, com a cabra preta, a goma, a farinha e o feijão. Ah, sim, tinha também um quilo de sal nos implementos.
Passou-se muito tempo, sem que o finado desse notícia, nem ele, nem a feiticeira, nem a cabra, nem nada. Enquanto isto, a família sofria a incerteza, tinha medo de que o infeliz, além de sucumbir ao feitiço, estivesse queimando no fogo do inferno. Então a dita Socorro recebeu uma carta da mãe, contando sonhos horríveis com o marido, pedindo ajuda e adiantando que uma vizinha o tinha visto soltando um fogo roxo pela boca. E a macumbeira, por sua vez, tinha desaparecido completamente. Como dizem lá: abriu-se o chão e não encontraram mais a mulher.
Foi aí que a Socorro, expedita e oportuna, lembrou-se de recorrer à sabença dum pai-de-santo prestigioso, aqui mesmo em Fortaleza– um homem de muita convivência com as forças do Alto, que também acudira a sua amiga nas trevas duma paixão desencontrada e atacada por malefícios que lhe fora feito em terras do maranhão, por uma Ph.D no assunto.
Sabem o que foi que o homem disse? Que só podia garantir o trabalho se lhe mandassem uma cabra.
Da preta!

De As outras cunhãs.

sexta-feira, 14 de maio de 2010



NASCIMENTO, VIDA, PAIXÃO E MORTE DA NOITE

O sino badalou as seis horas como um dobre de finado pelo sol que agonizava, correu um murmúrio de prece no mundo, acenderam-se velas e pouco depois, banhado em sangue, o mesmo sol morreu afogado no mar, como convinha.
Foi nesta hora neutra que a noite desceu, indecisa e pálida, mas cresceu de repente, ganhou corpo, cobriu-se com um vestidinho preto e o estendeu por igual de alto a baixo, em cima da cidade. Pôs cadeiras nas calçadas, apagou o fogo das cozinhas, acendeu a luz, trouxe crianças para a rua e fez cirandas com elas, cantou cantigas de roda, chamou pretas velhas para os batentes das portas, as quais pretas permutaram estórias, cachimbaram, cochilaram, trocaram lembranças antigas de outras noites irmãs.
E porque a Noite era uma menina ingênua, rezava ainda, guardava no ouvido o toque recente das Ave-Marias, promovia na terra uma atmosfera de sinceridade e de pureza. Logo depois fecharam as igrejas.
A Noite então ficou adolescente, visitou hospitais, adormeceu doentes, acalmou loucos, cessou tosses, calou soluços, apagou prantos, entrou nas casas, embalou crianças, recolheu todos os velhos e os fez dormir tropeçando em cochilos, com sonhos raros, sono leve mas constante. Baixou as pálpebras das aves e dos pássaros, deitou tranqüilamente os justos, ninou os santos, os bem-aventurados, os que rezam cedo e dormem cedo.
Passou-se o tempo, a Noite ficou moça, juntou gente nas avenidas, promoveu festinhas, abriu cinemas e teatros, entrelaçou as mãos dos namorados, fez quermesses em suburbanos pátios de igreja, correu às matas, juntou-se ao vento, assobiou nos cipós, deitou sombra, insinuou encontros e os animais atenderam ao estranho apelo.
Foi a essa altura que começaram as serenatas, a Noite ficou romântica, chamando amor, juntando violeiros, cantadores, jograis e poetas, inspirou baladas e madrigais e velhas cantigas foram cantadas debaixo das sacadas de janelas, com trêmulos de voz saindo de jovens peitos apaixonados.
Seduzida pelo mistério, atraída pelo desconhecido, a Noite vedeta vestiu-se de negro violento, enfeitou-se de estrela, escureceu caminhos e ruas e montes e mares, uniu amantes, alcovitou, assistiu a macumbas em terreiros Xangô, ganhou o rumo do mar, explorou beiras de praia. Por volta das doze horas, tinha entrado em todos os bares, ficou alta, perdeu-se.
Foi aí que começou sua vida airada, alegre quadra, embuçou-se, abriu cassino, buate, cabaré, gafieira, chamou músicos, povoou as ruas de gente barulhenta, enterrou tristezas, conheceu todos os vícios, embriagou-se, foi cantada, louvada, amada, desejada, foi possuída por ladrões e grão-senhores, acomodou no seio imenso todos os boêmios, provocou adultérios, enfrentou perigos, abrigou mulheres de má vida, viu correr sangue, viu rosas e gente nascendo, ela mesma abriu porta de cadeia e de prostíbulo. Ficou grávida de mistérios, testemunhou traições e lealdades e todos os notívagos, seus filhos, ainda no ventre aconchegante, confraternizaram. Eram todos alegres irmãos.
Depois a Noite foi esfriando, foi decaindo, foi envelhecendo, foi perdendo a cor, os amantes, os amigos, perdeu o nome, virou madrugada e assim, sonolenta, frágil, abandonada por quase todos (só alguns poucos filhos fieis lhe assistiram os momentos finais), sem música, sem canto, quase sem voz, estertorou, morreu, espalhou restos na terra, no ar, no mar. Malsinada pelos filhos infiéis: pelos guardas noturnos, enfermeiros de plantão, vigias, por todos os que trabalham enquanto outros gozam, repousam ou se divertem. “In extremis” ouviu ainda o galo, ansioso e bajulador, que saudava o sol nascente: a Rainha morreu, viva o Rei.
E aqueles todos que tinham amado a noite-menina, os que amaram de amor puro, as crianças, os velhos, os enfermos, foram os primeiros que acordaram e, esquecidos dela, saudaram também o sol e bendisseram novo dia.

De A ilha do homem só.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

QUE MUNDO É ESTE?

Que mundo é este em que vivemos, que rapidamente se desvairou e traz o povo perplexo e desarvorado em cada amanhecer, em cada anoitecer, com as noticias de desgraças por toda parte cruzando o espaço, transmitidas inexoravelmente pelo radio, pela televisão, repetidas nos jornais com abundantes detalhes? Parece que as forças da natureza se uniram aos desmandos dos homens: além de furacão e tremor de terra, os assaltos, os seqüestros se multiplicam produzindo uma constante de insegurança, para não dizer de pavor. Será que soltaram as bestas do Apocalipse, ou são apenas as bruxas no exercício rotineiro das suas funções?

Nesta linha de idéias que vez por outra fatalmente nos ferem e conduzem à indesejada depressão, chega-se a ter nostalgia do mais antigo outrora, daquele tempo que não se conheceu pessoalmente, de que apenas se teve noticia, a doce vida do princípio do século, dourada com o deslumbramento que as descobertas iam acordando, despertando a curiosidade, exatamente porque ultrapassavam os limites das possibilidades então conhecidas, provocando na imaginação do povo cogitações ousadas e fantasias atrevidas, objetos de longos comentários nas tranqüilas conversas de cadeiras na calçada.

O escritor José Cândido de Carvalho disse uma vez que o mundo só foi bom até o advento do automóvel. Sei lá, realmente era tudo muito misterioso e distante, a vida era mansa, tinha ritmo mais lento, mais humano, as gerações se sucediam cumprindo os mesmos princípios, sem conflitos: os filhos, os netos e bisnetos repetiam as atitudes dos seus antepassados sem protestos e sem recalques.

Muito depois inventaram os complexos, complicaram a educação, aposentaram a palmatória, deram às crianças, sobretudo os adolescentes, liberdade total, a qual liberdade muito deles usaram desastrosamente, com a cumplicidade do volante e o tempero das drogas. O diálogo se impôs como uma necessidade, mas, ao mesmo tempo, tornou-se instrumento de rebeldia- e por trás desta palavra mágica de inegável importância no nosso contexto, já muito falta de respeito à autoridade paterna tem ocorrido, já muito drama foi vivido e sofrido.

Longe de mim a idéia de deitar carrancismo e rancor contra as novas gerações, que têm seus encantos e virtudes: reconheço que os bons de hoje são melhores do que os de ontem, mais sinceros, mais abertos, mais francos, despojados das passadas hipocrisias. Os realmente bons são ótimos: bem-aventurados, pois, os pais que os têm.

Apesar de todo um complexo sistema educacional, apoiado em teorias e experiências que cada dia se renovam, difícil é saber que rumo tomar para a orientação de um filho, num mundo tão conturbado, tão marcado por maldades e percalços, tão pertubadoramente alucinado. Uma senhora se queixava outro dia que não sabia como fazer: se prender os filhos vem o demônio dos complexos; se soltar vem o diabo do perigo a que se expõem os meninos verdes e meninas em flor que se mandam sozinhos para as alegrias da noite e retornam para casa ao romper da aurora.

Quem sou eu, para ensinar como fazer? Cada vez respeito mais e admiro mais o trabalho dos pais e mestres que sabem conduzir seus filhos e alunos com a devida habilidade, preservando-os sabiamente nesta difícil, agitada maré reinante.

Não faz muito tempo um amigo chorou no meu ombro, confessando seu total fracasso na direção da família. Foi praticamente apeado do poder domestico: assim que os filhos completarem dezessete, dezoito anos, deram o grito de independência e saíram por aí a provocar desgosto em cada fim de semana, de tal forma que a partir de sexta-feira começa a correr-lhe um frio na alma, com medo do que possa acontecer de terrível a essas aves implumes soltas nos caminhos da madrugada.

Não se conforma com a perda do controle, recorda os padrões em que se criou, a força que fez para se afirmar na vida, vindo duma camada social pobre, a vitoria que alcançou com seu suor, os empregos humildes que exerceu, as dificuldades que enfrentou na cidade que lhe era estranha, as economias que fez, a pecúnia que amealhou, a situação que conquistou, elevando-se mesmo à categoria dos ricos. Diz que os meninos se aborreceram e debicam quando ele evoca todo esse passado dolorido, a história do homem que se levantou por conta própria, que se fez só com o seu trabalho e a ajuda de Deus, que deveria ser contada com alegria, como modelo e lição.

Pior é que o cupim está em todas as camadas. Semana passada andou aqui a Tereza Paixão, uma mulata velhota, pequena, humilde, lavadeira de profissão, que tem as mãos engelhadas do seu oficio e os dedos enrugados até as pontas. Cedo enviuvou e criou a duras penas os filhos tacitamente confiados ao seu único encargo. Coitada da Tereza Paixão, fazia tempo que eu não a via, parece agora uma pintinha molhada, indefesa, está um caquinho, minguado, sumindo, se devorando no sofrimento. Aqueles filhos que lhe custaram tanto cuidado, trabalho, sacrifício e afeição, que ela tratou como pôde, alimentou, embalou em longas noites de vigília nas doenças, deu escola e ensinamento, estão lhe atormentando a velhice. Não vê, a mais velha se tresmalhou mal se pôs moça, instalou-se oficialmente como mulher de má-vida. E o que mais lhe dói é que a filha nem lhe aparece para pedir a bênção. - Que bênção eu dou (assim foi o seu falar), mas não posso impedir o choro quando me lembro do seu destino. O outro, que lhe vinha encostado, sentou o pé no mundo, nunca deu noticia. E o terceiro já é um virtuoso consumidor de cachaça, vive desempregado, curtindo seu bom cascarobil. Agora já lhe assombra o mau exemplo para os menores, para as duas que estão ficando mocinhas. Ah mundão cheio de surpresas!

Deus me livre de deitar nuvens na alma do leitor, por conta destes poucos exemplos isolados. No plano da conversa puxa conversa, quando se comenta os desvarios da humanidade, baixa de quando em quando um rápido momento depressivo, que nos leva a indagar que mundo é este em que vivemos. Mas não há razão para desesperos: basta atentar para o número de jovens que cada ano concluem seus curso universitário, basta lembrar os milhares que se inscrevem na guerra do vestibular, os que estão participando de movimentos sadios, construtivos. Basta ver aqueles moços que espontaneamente se oferecem nos asilos de idosos para tomar um velho sob sua guarda, um ancião para seu afilhado.

No mais, a vida continua mantendo sua reserva de beleza e uma palavra de compreensão, de apoio, um gesto de bondade, valem muito mais do que toda a maldade acumulada.

De repente nos refazemos da depressão, reagimos contra os maus pensamentos, redescobrimos que não vale a pena fazer coro com os eternos inconformados, abrimos os olhos para os que estão cuidando de preservar os valores morais e espirituais do homem, volvemos à confiança na humanidade, recorremos à lição de que “a única atitude possível diante do absurdo da vida é uma resignação com humor”. Nem tudo está perdido e amanha é outro dia, com a graça de Deus.
De A capitoa

A UM NOIVO QUARENTÃO

Amigo, sempre chegou tua comunicação de noivado, apesar de tantos contratempos e desencontros, e chegou num momento em que deveriam chegar todas as participações como esta, depois de alguns dias de chuva impertinente e copiosa, com o aparecimento imediato, inesperado, dum sol festivo iluminando o mundo, promovendo uma singular imitação de primavera durante algumas horas da manhã, tão parecido com o tempo de nós meninos, no sertão, gozando com a mesma volúpia a chuva e o sol.
Apesar de tantas alegrias inesperadas e belas, ainda me sobrou de saldo uma preocupação, verdade que pequena, medindo talvez desse uma gota, ou duas, mas preocupação é feito veneno, tem delas grandes que não ofendem muito, tem umas pequenas que deprimem, dão até pra matar. Tudo por conta de duas frases que acompanhavam o cartão, umas poucas palavras em que manifestaste o temor de não encontrar mais lugar, nem tempo, nem razão para o amor grande como este teu, que chegou à beira dos quarenta, e o confessado medo de que isto, que agora é amor, venha depois de se tornar aquela coisa insossa da maioria dos casamentos, a tolerância mútua, a rotina, ou, mais exatamente, apenas a coexistência pacifica por via de interesses comuns, os filhos, os bens, a casa, a preguiça de outras aventuras, a triste acomodação.
Homem de Deus, para que malinaste uma coisa destas, por que deixaste tua cabeça pensamentear preocupação assim? Antes tivesses rebolado longe a idéia infeliz, como se faz com urtiga, não devias verbalizar o receio, nem escrever, nem deixar tomar corpo, nada: matar no nascedouro. Pois ninguém se habilita para o casamento, com o favor de Deus, pensando que se vai dar mal, ninguém vai pensando em desmanchar, ninguém vai assuntando desquite nem perda de amor, nem divórcio. A menos que esteja mal intencionado, como quem vai aos pés do vigário confessar pecados e, em vez de arrependimento verdadeiro, como manda a Santa Madre Igreja, já está calculando o dia em que vai reincidir, pensando num prazo razoável para recomeçar tudo de novo. O que, decididamente, não é o teu caso.
Sacode fora o mau pensamento, irmão, que é ver coisa de bruxaria, vai na raça, vai que é bom e encara o futuro como homem de juízo, nem imaginando tudo cor-de-rosa, nem vendo tudo negro, vai com Deus, sabendo desde já que terás de amar, de sofrer, de trabalhar mais pela sobrevivência, pela manutenção do famoso “padrão de vida decente”, que custa os olhos da cara, a gente sabe. Mas também se sabe que não te faltará coragem, nem senso de humor, nem inteligência, nem o amor da mulher escolhida, nem as alegrias da paternidade, nem as respectivas preocupações, nem o encanto, nem o desassossego.
É ingênuo imaginar que não há mais lugar, nem tempo, nem razão para amor tão grande assim, é ingênuo ter medo de decepção, como se a televisão, o rádio, as experiências nucleares tivessem mudado a nossa forma de ser, como se o coração não fosse o mesmo, não reagisse da mesma forma humana. Terá mudado, talvez, a maneira de manifestar-se, mudaram as expressões, variou o uso da declaração feita em versinho flor de laranjeira em “papel amizade” mas os elementos que compuseram o amor do primeiro homem e da primeira mulher, em cima deste chão velho, ainda são os mesmos.
Quem contrai amor grande vai experimentando ainda os mesmos sintomas: perto não acalma, não sossega longe, junto pode estar tranqüilo, longe pode estar inquieto, não sossega nem o gente nem o objeto, tira o sono, traz o sono, dá preguiça mas pode dar disposição, dá leseira e dá esperteza, alegra, entristece, maltrata, alivia, é o diabo, é um inferno, é o céu, de amor se vive, por amor se vive e se mata por amor e de amor- não tem quem entenda e todo mundo entende. E melhor será tê-lo que não tê-lo. Vai que é bom...



De Cartas sem resposta.



O JULGAMENTO


Ontem aportei numa barbearia de subúrbio, destas em que os barbeiros ainda julgam da sua obrigação entreter o freguês com a conversa, enquanto o atendem, ou durante a espera. Foi exatamente naquele dia em que um homem assassinara a mulher com 32 facadas. Eu tinha visto a manchete a distância, mas não lera o corpo da noticia, por isto não conhecia nem conheço detalhes, sei apenas que foi por ciúme, ou, se quiserem, por amor. E o assunto que começara justamente na minha cadeira, dentro de pouco tempo se alastrou, apaixonou o salão todo, e barbeiro e fregueses serviram-se fartamente do tema.
O que começou a conversa reprovara o crime com expressões banais, repetindo frases feitas para a ocasião e descambou rapidamente para o seu caso pessoal:
- Ora que doidice! Estragar a vida por causa duma mulher (não lamentava o óbito, mas a cadeia). – Pois eu estou doido que a minha lá em casa me deixe. Faz até um favor.
Um outro, de meia idade, foi categoricamente contra o assassinato e também derrapou para o plano particular, lembrou a sorte que tivera no casamento, gabou-se da família bem constituída, os filhos trabalhando, as filhas casadas, informou que dentro de trinta anos nunca reinara ciúme no seu lar. E de certo modo se explicou com bastante humildade: - Sim que a minha mulher não é bonita. Quando resolvi escolher moça, foi logo no que eu pensei, foi não carregar perigo para dentro de casa.
Um jovem moreno reprovou as 33 facadas, mas aí foi uma reprovação mais de ordem técnica, criticou a má pontaria criminosa. E um outro, que estava lá simplesmente a perder tempo, concordou em gênero, número e grau com o assassinato, achou tudo muito certo, ate julgou que 32 facadas ainda eram poucas. Isto se, na verdade, o ciúme tivesse fundamento, se a vitima realmente estava traindo o marido. Que mulher traidora não merece outro destino, concluiu incisivo.
Um barbeiro moço, que estava sem freguês, foi o ultimo a falar. Este aprovou igualmente o crime, também no caso de se tratar duma adultera, mas reconheceu que houve inflação de punhaladas, não precisava tantas. Assim já era ferocidade.
Dentro de pouco tempo eu tive a impressão de estar no mais agitado tribunal do júri, uns na defesa, outros no ataque, a questão do amor, do ódio e do ciúme, foi abordado copiosamente- e ainda não tinham chegado a um acordo, quando a manicure, a única no salão, tomou a palavra.
Ah, vocês precisavam ver a valentia daquela mulher pequena, magra, em cima do solto alto, os brincos balançando, acompanhando o inquieto movimento da cabeça, os olhos de víbora querendo saltar das orbitas, as mãos pequenas, expressivas, agitadas em gestos largos, a voz empostada no volume mais alto, tomando a defesa das mulheres, feito oradora em comício.
Arrolou todas as conhecidas razões do seu sexo, a famosa igualdade de direitos nunca reconhecida, e excessiva liberdade dos homens, a prepotência, o complexo de machismo. Claro que usou vocabulário mais pessoal, mas o sentido esta sendo reproduzido com fidelidade. Falou no grande numero de maridos que vivem mais na rua do quem em casa, os que traem a esposa abertamente, ainda se dão ao luxo de ter ciúme e impor restrições, fazer exigências de toda ordem- E, sabem duma coisa?- interrogou conclusiva. - Homem ruim foi feito pra ser traído.
Então aquele senhor mais velho, que representava a experiência, o poder moderador, o que de tão prudente casara com mulher feia, enviesou um olhar de repreensão e no seu lento falar, economizando gestos, criticou o exagero das opiniões da moça e os enganos em que incorrera, principalmente quando falara em marido ruim. – Porque aí, disse ele, é que está o erro maior. Os maridos mais traídos são os bons, pode prestar atenção. E homem bom não merece nem traição nem punição.
A discussão se generalizou, passara à casuística. E o mais curioso é que os exemplos foram tomados entre gente conhecida do bairro, citaram nomes, endereços, davam detalhes, coloriam os casos com a maior tranqüilidade.
Quando estavam neste ponto, que já lembravam mais uma cena de teatro do que salão de barbearia surgiu uma figura imprevista, certamente o tipo popular do bairro, um homem de prováveis sessenta anos, as mãos cheias de samambaias, o olhar aceso por bicadas de cana que o hálito denunciava. Chegou dando viva à chuva (chovia, sim) louvou a Deus nas alturas e pediu paz, na terra, para os homens de boa vontade e ofereceu plantas. Que ali estavam só amostras, ele podia buscar mais para quem se interessasse. De repente recomeçaram a discussão, o homem das samambaias percebeu o tema reimoso, foi saindo reprovador, com estas palavras:- Eras! Aqui só se fala em desgraça. E se despediu sem uma palavra.
Foi o tempo que terminaram a minha barba, eu paguei e saí pensando na rapidez, na diversidade, na fragilidade do julgamento humano.

De A capitoa


A CARTA DO MORTO


Recebo estranha carta, acompanhada de um bilhete, em que o remetente esclarece haver captado o texto numa comunicação do Além, acrescentando que o autor, que se dizia meu leitor terreno, pedia que se dirigisse a mim para a publicação. Bastante dúvida penei, antes de resolver atender ao bizarro pedido. Como não quero ficar devendo nada às almas, pelo sim ou pelo não, aqui vai transcrita a mensagem.
“Não faz um ano que desencarnei- o que não é nada, com relação à eternidade. Estava com 61 anos e caminhava tranquilamente de volta para casa, depois dum dia cansativo, carregando meu embrulho de pão debaixo do braço, ruminando a bronca que o chefe me passara, só porque eu tomara alguns minutos do trabalho, para fazer a loteria esportiva. Justamente, eu pensava na minha vingança, se tirasse o bolão. Nisto, um carro, correndo numa velocidade doida, saiu lá da sua mão, na pista, veio me colher do lado oposto.
Miserável, foi dizer no DETRAN que eu atravessei, que a culpa foi minha- não houve ninguém que quisesse perder um pouco de tempo depondo em meu favor. Deixa estar que ele me paga.
Fiquei dois dias no necrotério, entre dois defuntos mal cheirosos, esperando que alguém me fosse identificar. Minha família pensava que eu andava por aí, na reinação do mundo, só porque, trinta anos antes, eu morava no Rio de Janeiro, desci para pegar uma caixa de fósforos, num sábado de carnaval, só apareci na quarta-feira de cinzas. Iludição da juventude.
Sim, minha mulher me reconheceu logo, fez praça de esposa-amante, ali mesmo exerceu um ataque, que foi sempre a sua especialidade e quando voltou do esperneio, foi se lamentando (isto também ela sempre fez com sabedoria), falando da falta que ia fazer. Tudo amostração, claro. Ela bem sabia que eu ia deixar alivio, já estavam todos com medo da minha aposentadoria, rosnavam que eu ia ficar chateando em casa o dia todo. Ficou bem, a velha. Deixei o Instituto, os Merceeiros, um montepio (que eu vinha pagando há pouco tempo), uma casinha, um terreno comprado a prestação. É capaz de ainda se enxerir pra casamento.
Saiu meu retrato no jornal e eu sei que algumas pessoas se comoveram- certamente pelo trágico do acontecimento. Mas no velório se comportaram muito mal, riram, contaram piadas, beberam e me ignoraram completamente. E dois deles, eu ouvi, falara de mim, donde se vê que na terra não se respeita mais nem defunto, que antigamente era como coisa sagrada. Pior é que exatamente os que falavam, eram os mais cheios de defeitos, agora eu sei. Não pude me levantar para dizer que não apontassem o erro alheio com o dedo sujo. Atacar um homem eternamente indefeso é a maior covardia. A partir de meia-noite, até às cinco da manhã, fiquei completamente só, com as quatro velas me pranteando: os de fora foram embora, os de casa foram dormir.
Meu chefe apareceu para os pêsames, demorou dez minutos, desculpou-se porque não podia ir ao enterro, ofereceu-se para alguma dificuldade. Bicho falso! Nem foi à missa de sétimo dia e quando minha viúva o procurou, mandou dizer que não estava. E o que me matou, não apareceu, não deu noticias até hoje.
Minha passagem foi muito boa, até agradável, acolhido que fui por alguns conhecidos. Aqui reina um silencio grande, “sepulcral”, como se costuma dizer aí, mas a gente revê amigos, se comunica pelo pensamento a até regozija pelo encontro. Ainda não fui chamado para a prestação de contas, me disseram que as filas do purgatório e do inferno estão maiores do que as do INPS. Reconheço humildemente que pro céu não posso ir direto.
Enquanto isto, como aqui se sabe de tudo, nossa distração, além das preces, é acompanhar o que se vai passando no mundo e descobrindo, com surpresa, a lama que corre na alma de muita gente, que eu considerava perfeita- exatamente alguns que se arvoram em críticos, os conhecidos censores, os mais gulosos da vida alheia, os mais categóricos no julgamento, os mais radicais na condenação. Eu bem sabia que a humanidade é terrivelmente pecadora, que os degredados filhos de Eva estão degradados, na sua maior parte, mas nunca imaginei que a iniqüidade chegasse a tanto. Tem muito mais ladrão do que se pensa, tem muito mais viciado do que se cuida e quase todos, sendo inteligentes, fazem sua defesa atacando os outros (os mais faladores são exatamente os que têm mais rabo de palha). E a hipocrisia, a maldade, a traição, os falsos amigos, a ingratidão, o orgulho, a falta de caridade, a vaidade excessiva, a desonestidade, a volúpia de humilhar, Santo Deus!
Como sou novato (um ano é um pingo) ainda não sei se a gente pode se juntar para brincar de bandido e pelo menos fazer susto e medo aos vivos, sem fazer mal. Sim, porque na hora de pensar em vingança, acode-me à mente o pai Nosso: “ Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos os que nos têm ofendido”. Mas hoje eu encontrei dois espíritos que me apareceram bastante zombeteiros, espiando uma cena imprópria, proibida, ousada, de gente muito conhecida na terra. Eu aconselhei, eles fizeram que não ouviram. Não; minto: um deles me deitou uma repreensão de veterano.
Tenho esperança de encontrar algum saldo: vivi pobre, sofri injustiça e humilhação, padeci moléstia, não realizei nada do que contava quando jovem. Logo eu, que só pensava em Paris, champanhe, caviar, mulheres. Entrei pelo cano. Os pecados maiores foram mesmo os alegres prazeres da juventude, e a minha maior dificuldade no momento é me arrepender deles. Confesso que talvez tenha errado menos, por falta de meios: a pobreza acaba encaminhando para a virtude. Casei cedo e mal, vivi num inferno com a minha legitima, de quem nunca me separei por falta de dinheiro e coragem.
Verdade seja dita, sempre acreditei em Deus, fui sempre um homem sincero, procurei ser autentico até nos erros, respeitei o próximo, rezei diariamente minhas orações, cumpri meus deveres. Agradeço aos que estão respeitando a minha ausência. Orem muito. Adeus, até o infinito. A paz de Deus seja convosco”.


Do livro A capitoa

terça-feira, 11 de maio de 2010


A UM LADRÃO

Senhor Ladrão, saudações. Faz tempo que sabemos da existência um do outro, mas não tivemos ainda oportunidade duma apresentação pessoal, que eu desejo muito. Certamente o senhor me conhece de vista, talvez de nome, sabe meu endereço, meus hábitos, os pontos em que costumo encontrar o carrinho- e muita vez terá se rejubilado quando me viu chegar ao local em que tem certeza de que me vou demorar um pouco mais; há de ficar particularmente feliz quando vê que vou ficar preso numa sala de aula durante duas horas. Aí, parece que estou vendo, o senhor age à vontade, sem susto, vai cumprindo tranquilamente o plano que traçou, a determinação de ir tirando, um por um, os acessórios do meu carro.


Bem se vê que o senhor é um homem metódico, persistente, atual, habituado ao crediário- a assim, em vez de me depenar duma vez, foi subtraindo tudo a prestação. Um dia tirou a ferramenta. Depois, deu um bom prazo, deixou que eu me refizesse do impacto, tirou o sobressalente, que agora chamam de “step”. Mais tarde levou o extintor de incêndio. E, por ultimo, tendo terminado seu trabalho interno, passou a tirar o que esta por fora do carro. Começou ontem, carregando o emblema da “Volkswagen” que fica em cima do capô.

Senhor ladrão, agradeço a sua preferência, que bastante me honra, e agradeço profundamente penhorado a admiração particular que o senhor vem demonstrando por este modesto automóvel. Mas agora, que o Natal se aproxima, quero lhe lembrar que só restam o espelhinho retrovisor e os dois limpa-parabrisas (um dos quais já foi substituído, lembra?)- por isto venho pedir ao senhor, que provalvemente também deseja paz, na terra, que me dê de festas uma trégua.

Não é bem pelo aspecto material do assunto, porque, reconheço, o senhor é um homem de Deus, também precisa viver e escolheu este perigoso oficio, que pode, quem sabe, comprometer-lhe um grande bem, que é a liberdade, ou tirar-lhe a vida. Não veja nisto uma ameaça, pois, talvez o senhor não saiba, eu só mato barata e formiga, isto mesmo na minha casa. Claro, aí é um caso de legitima defesa. Peço-lhe, principalmente, pela minha consciência, para evitar um pecado grave em que estou incorrendo repetidamente, que é o mau juízo que posso fazer de algumas pessoas. Isto me preocupa bastante, me coloca muito mal perante Deus.

Gostaria de conversar muito com o senhor. Primeiro, para saber como começou esta paixão pelo carrinho, saber se foi amor à primeira vista- e conhecer os detalhes deste romance que pode ter um “happy-end” no Distrito, com o meu testemunho. Segundo, para me informar se conseguiu uma chave igual, ou se é um talento seu este de abrir a porta com uma gazua, talvez um simples arame, como eu vi no cinema, uma vez.

Alguns anos atrás, dois amigos meus, que moravam no mesmo apartamento aqui em Fortaleza, tinham também seu ladrão particular, muito especial e, até certo ponto, honesto, pois nunca roubava os dois ao mesmo tempo. Vinha de noite, tirava dinheiro de um deles, dobrava cuidadosamente a calça, deixava tudo aparentemente como encontrara. Em seguida, dirigia-se à adega, onde não faltavam as melhores bebidas, inclusive uísque escocês e ele desprezava tudo: só se interessava pelo rum. Tirava uma só garrafa, imagina-se que punha debaixo do braço, com a alegria de quem pratica uma obra de caridade, descia as escadas calmamente e desaparecia. Dia seguinte , a vitima ficava esbravejando, falava em ir à policia, queria mudar a fechadura da porta, que era, alias, bastante cara, mas justamente a necessidade de comprar outra o surpreendia sem dinheiro. Comentava-se o caso por alguns dias, depois voltava-se à rotina e o fato caia no esquecimento.

No mês seguinte, quando menos se esperava, o dito ladrão reaparecia, operava da mesma maneira, roubava o outro moço, um mineiro tranqüilo. Este reagia da mesma forma, se revoltava no inicio, depois negligenciava, esquecia, deixava passar o tempo. Corria tudo assim muito engraçado, até que, como diz aquela velha canção, “há na vida sempre um dia de um sonho se acabar”. Pois não foi um dia, foi uma noite, surpreenderam o até então bem sucedido lunfa e o conduziram à policia, onde ele confessou que uma antiga empregada, sua amada-amante, lhe emprestara a chave, para bater a cópia competente.

E o senhor, meu caro Ladrão (o senhor está me saindo muito caro mesmo) como é que está fazendo? Estou morrendo de curiosidade por saber como foi que, havendo tantos carros iguais e tantos outros mais bonitos, dando sopa, o senhor se engraçou exatamente do meu, comprado em consórcio, num longo e lento crediário. Neste ponto lamento sua falta de sensibilidade, até de inteligência: havendo muito carro bacana, de gente rica, o senhor veio gastar a sua inveja justamente comigo, que só tenho de invejável o pobre carro.

Espero que o senhor não seja o mesmo que, há dois anos, levou da minha casa meus óculos, minha esferográfica americana, minha eletrola e o relógio. Então, dum golpe, me deixou sem vista, sem escrita, sem musica sem orientação no tempo. Certamente não é o mesmo, porque em matéria de especialidade, os senhores são muito coerentes, nunca mudam de ramo: sem duvida sua vocação especifica é para roubo de peças.

Sirvo-me do ensejo para dizer-lhe que, se de todo o senhor não sentir a tentação de levar aqueles dois últimos acessórios, cumpra seu desejo- não há coisa mais terrível no mundo do que uma frustração. Da minha parte, declaro que já estou devidamente condicionado: já perdi tantos, que mais dois, menos dois, não significa nada, diante da irresistível atração que provavelmente tem por eles.

Mas, peço-lhe por tudo, peço ate pelo amor de Deus, não me leve o carro. Que aí, é mesmo que quebrar minhas pernas.

Boas festas, feliz ano novo.


De Cartas sem resposta

segunda-feira, 10 de maio de 2010



A UM DESENCANTADO


Meu amigo: Seu obstinado ponto de vista a respeito do problema da auto-aceitação está merecendo urgentes reparos e esclarecimentos inadiáveis. Porque há uma diferença essencial (que sua acalorada revolta não me deixou estabelecer quando discutimos sobre o assunto) entre “estar satisfeito consigo mesmo” e “aceitar-se”.

Certo que só os medíocres, talvez somente os simples, aqueles pobres de espírito de que falam os evangelhos e para quem está reservado o reino do céu, estão contentes com o que são. É privilegio deles, os eleitos de Deus, sem duvida mais próximos de atingir a felicidade no seu sentido mais comum. Sem falar, é claro, nas outras criaturas de exceção, as perfeitas, que não vêm ao caso.

Mas depois de alguns anos de inquilinato em cima deste velho chão, principalmente quando se deixaram longe as crises de adolescência e os normais protestos da juventude, quando se vai atingindo a maturidade, cada um já teve tempo bastante de analisar-se desapaixonadamente, de fazer com equilíbrio um balanço da sua personalidade, de refletir de forma meno9s pessimista e menos otimista demais, cada um já teve prazo bastante acostumar-se aos defeitos próprios, reconhecidamente insuperáveis, aqueles que por motivos vários não foi possível corrigir. Enfim, cada um já teve tempo, a esta altura, de decidir por aceitar-se a si mesmo no todo ou em parte, embora não satisfeito com seus aspectos negativos pessoais.

É uma decorrência natural que se impõe dentro do tempo, uma atitude lógica que não deve ser confundida com a acomodação fácil nem exclui o desejo de melhorar: será antes uma posição filosófica, uma atitude sadia para quem já se deu conta de que cada um de nós não chega a ser um pingo insignificante em face dos séculos que vieram antes e dos que virão depois. Não vale a pena, pois, traumatizar-se em vão, indefinidamente, obstinadamente, sem sossego, sem consolo. Quando um problema começa a angustiar-nos com a sua insolubilidade real ou aparente, há uma verdade absoluta diante da qual nenhum argumento terá força para resistir: passa tudo. Ou esta outra verdade, recolhida da boca do povo: o que não tem remédio, remediado está. Alem disso, dentro de cinqüenta anos, talvez menos, estaremos mortos e só restara de tudo a branca ossada plantada no chão resistindo teimosamente, até tornar-se o triste pó final, definitivo. Memento homo.

Compreendo seu ponto de vista pessoal, sua ânsia de perfeição. Compreendo sua pureza, próprio do homem que guardou tanto de menino que foi. Ocorre-me aqui Bertrant Russel, para quem ninguém será grande homem se não conservar dentro de si alguma coisa da sua infância. Você é ainda, sob este aspecto de verdade, de pureza, um menino grande, inteligente, vivido, sofrido, constantemente atormentado diante da estupidez, da incompreensão, da loucura, da maldade do mundo, desencantado dentro da vida, mergulhando no álcool, numa busca diária, inútil, cansativa, todos os grandes e os pequenos problemas, num compreensível processo de fuga. De fuga e destruição interior.

Todas as pessoas que têm sensibilidade, as que têm os olhos abertos para as dores do mundo, agravadas muitas vezes por inevitáveis problemas de ordem pessoal ou familiar, recebem sua quota de amargura, umas mais, outras menos. Mas conservar problemas dentro de si, orgulhosamente, sem dividi-los, corresponde a uma lenta, constante, persistente intoxicação psicológica, que aumenta com o tempo, se não houver o devido suporte emocional. Há que descobrir depressa um desintoxicante humano que lhe proporcione a descarga psíquica, alguém com quem o amigo converse francamente, numa margem de absoluta confiança: é este, aliás, diga-se de passagem, o principio básico da psicanálise. Porque, insisto, sua revolta consigo mesmo, seu quase desespero facilmente revelado, seu protesto por ter vindo ao mundo sem ser consultado, passam do plano comum, correspondem, certamente, a conflitos interiores que desconheço, que devem ser equacionados e solucionados.

É preciso, principalmente, deixe que lhe sugira, estabelecer um esquema novo e começar pelo menos com o desejo de aceitar-se. Você tem condições e qualidades para isto, tem recursos humanos de sobra, tem reservas emocionais, tem patrimônio cultural, tem trunfos que até o credenciem como pessoa superior. Não lastime tanto a sua solidão, transforme-a, antes, numa fonte fecunda, criadora. Escreva, por exemplo. Cartas, artigos. Escreva um diário, confie ao papel seus sentimentos, rasgue depois, se quiser, guarde se quiser, publique se quiser, mas não deixe que sua inquietação interior fique sem canalização, acumulando-se inutilmente, oferecendo o constante perigo da intoxicação.

Aprenda a aceitar-se, amigo, pelos menos em parte, sob pena de cair na faixa trágica do desencanto total. Lembre-se de que não foram “homens felizes consigo mesmos” que deixaram sua marca no mundo. Foram geralmente homens torturados, tocados por uma ambição superior nem sempre atingida, pessoas que, no máximo, se aceitaram a si mesma, às vezes com restrições e com dificuldade. Volta tudo aqui ao famoso monólogo hamletiano, o nunca demais repetido “to be or not to be”. Conclua pela “afirmativa” que a vida, apesar de tudo, vale a pena de ser tentada, ao menos como experiência. Muitas vezes fascinante, é certo, mas freqüentemente uma longa, amarga, difícil, terrível experiência que é preciso saber entender e enfrentar.

Repita com Jacques Prevert: “Je suis comme je suis”- e acabou a estória, estamos conversados. Ou repita com Chico Romano, o cantador, que neste ponto deu lição a todo mundo: “Eu sou como Deus me fez, quem me quiser é assim”...
O resto, amigo, é coragem, Fé em Deus e pé na tábua.

Do livro Cartas sem resposta


SINOS


De todo o patrimônio da infância que se conserva intocado e intransferível dentro de nós, entre as lembranças musicais mais vivas- as canções de ninar, as cantigas de roda, os cantos sacros, as velhas valsas que as moças arrancavam suspirante ao piano, o dobrado da banda de música no patamar da igreja, as modinhas que os moços menestréis cantavam em serenata, com a cumplicidade da lua e do violão- entre elas todas, ficou e vive cada dia mais clara e mais sonora e mais saudosa dentro de nós, a voz do sino.

Anfitrião de andorinhas, solene e sólido como a própria igreja, autoritário como um chefe, preguiçoso e triste nas horas douradas do crepúsculo, alvoroçado nas matinas, veloz à hora em que convoca para as novenas e as missas, o sino da cidadezinha, pontificando do alto da torre, tem uma personalidade, uma força, uma importância, uma grandeza fantástica, marcando a vida da comunidade, contando as horas de pesar e os momentos felizes. Está tão integrado no cotidiano que o seu silêncio é capaz de promover dentro da alma do povo um sentimento terrível de melancolia e desamparo.

Diz que o emprego dos sinos é muito anterior ao cristianismo, não sei. Conta a história da China que foram fundidos em Tóquio, 2.262 anos antes de Cristo, 12 sinos, com sons musicais conhecidos naquela época. Alguns estudiosos duvidam desta afirmativa, acham que não eram propriamente sinos, mas grandes lâminas metálicas. Na Grécia e em Roma há vestígios, através de Estrabão e de Plínio, da existência de sinos marcando as horas e alertando chamadas. No Êxodo falava-se que Deus ordenara que a túnica do Sumo Sacerdote tivesse na fimbria pequenos sinos e guizos. Nas igrejas católicas, os sinos- segundo se calcula- devem ter sido usados por volta do século VIII, quando se tornou famoso um deles que Carlos Magno mandou fazer, com mais de duzentos quilos. E a indústria sineira se desenvolveu realmente depois da publicação do livro “ Harmonia “Universal”, do Padre Marsenne, divulgando noções importantes para a fundição dos sinos.

Agora eles tocam muito menos, não sei por quê. Mas no sertão, no tempo de antigamente, o sino despertava as gentes, chamava para a oração e para o trabalho. Depois, às 12 horas, lembravam que o dia estava na metade, funcionava então como relógio, orientando. E às seis horas dava aquele toque plangente das Ave-Marias, que ficava no espaço como uma grande reticência azul de paz, de recolhimento e de oração. E anunciava a morte em dobres fúnebres, numa gravidade de contachão, deitando no mundo uma atmosfera de desalento, convidando à reflexão e ao sufrágio, com a mesma força das palavras bíblicas:" Momento homo". E avisava as alegrias, badalava alegremente nos momentos festivos, participava da vida da cidade, testemunhava soluços e risos, derramava lamentos e hosanas.

O sino e o campanário têm sido relativamente pouco explorados pelo nosso cancioneiro popular. Sei bem que das cantigas brasileiras, a única que se refere a campanário é aquela velha triste e linda que diz: " No alto do campanário/Uma estrela ilumina o passado" E mais adiante: " Sinos que plangem com mágoas doridas/Recordando os sonhos/ A aurora da vida/Traz ao coração paz e alegria/Em mim o som da Ave-Maria."

O certo é que há um sino cantando em cada um de nós. Cantando digo mal, vivendo conosco, chorando ou se alegrando no campanário do velho coração, segundo manda a vida. A mim particularmente eles impressionam sempre e tanto que venho fazendo, faz tempo, um "dossier" ( não ouso dizer pesquisa), juntando tudo o que vou encontrando sobre sinos-e a pasta vai se avolumando, esperando o tempo futuro do 'ócio com dignidade". pois se as graças da aposentadoria me alcançarem, vou me entregar à colheita do que venho semeando por agora: epitáfios e sinos.

Enquanto não chega, fumando espero, vou me conformando em soltar vez por outra uma amostra grátis. E pedindo a colaboração dos amigos, pedindo-lhes que me mandem o que tiverem sobre estes dois temas de minha paixão particular. Juro que já estou com a mão no peito agradecendo. Ainda moro na mesma casa- se bem se lembram- Rua Coronel Ferraz, 230. Por hoje vos deixo na boa companhia do Fernando Pessoa, com os últimos quatro versos dum poema belíssimo que ele escreveu para o sino da sua aldeia:


" A cada pancada tua,
Vibrando no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto."

Do livro Relembranças



A CRÔNICA DE MILTON DIAS

Essencialmente cronista, Milton Dias sabe a importância das coisas miúdas, dos pequenos acontecimentos que também fazem parte da condição humana। Ao captar instantes, fragmentos de tempo, ele, com o olhar agudo, entende que aí se esconde a complexidade de nossas dores, das nossas alegrias, dos nossos sonhos, das nossas frustrações; percebe, assim, que, por trás do aparentemente banal, do que pode parecer inexpressivo, está algo que nos perturba, que diz de nós, que, afinal, espelha nosso duplo ou fragmentos de nossos valores, crenças e modos de ver o mundo.
A crônica de Milton Dias é, essencialmente, lírica. Sua linguagem flui em ritmo prolongado, muitas vezes em períodos longos, mas em frases curtas, e dessa combinação se evola um quê de música, de melodia que se encontra nas vozes da natureza. O gosto pelos adjetivos faz com que os quadros da realidade por ele captados banhem-se de uma atmosfera pastosa, pois tudo se deixa envolver pela emoção.

É ele, sobretudo, um amante da cidade que o acolheu - esta Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Em suas crônicas, enumeram-se os logradouros, os monumentos, os tipos populares, os movimentos da noite, o conto dos galos, o apito dos vigias, os automóveis com os seus faróis queimando a noite escura. Naturalmente, tal configuração já não mais condiz com os dias de hoje; entanto, lê-lo é deparar uma outra Fortaleza, estabelecendo, assim, uma ponte entre o passado e o presente; é, pois, um reencontro com fragmentos de nossa identidade.

Obras do autor
Capitoa-Crônicas-1982
A Ilha do Homem Só- Crônicas 1966
As Cunhas- Crônicas-1966
As Outras Cunhas- Crônicas-1977
Cartas sem Respostas-Crônicas-1974
Discursos Acadêmicos- Textos doutrinários- 1975
Dois Discursos Acadêmicos- Textos doutrinários-1978
Entre a Boca da Noite e a Madrugada- Crônicas-1971
Fortaleza e Eu - Crítica, teoria e história literárias-1976
Passeio no Conto Francês- Crítica, teoria e história literárias-1982
Pé Guy, teoria e história literárias 1976
Sete Estrelo - Crônicas-1960
Três Cidadãos de Massapés- Crítica, teoria e história literárias-1975
Três Discursos Acadêmicos- Textos doutrinários-1978
Viagem no Arco-Íris- Crônicas-1974

Autobiografia

Eu, Milton Dias

EU ME DIVIRTO - Com uma boa estória colhida no cotidiano (não com anedotas). Eu me divirto com crianças, pássaros, circo. Com teatro e cinema (bons)

EU COLECIONO - Pára –choques de caminhão. Epitáfios. Prosa e verso sobre sinos. Estórias de domesticas. Prosopopéia.

EU REPARTO- Minha alegria, minha musica, meus bons momentos, minha casa, minha mesa, meuás versos de estimação. Não sei viver sozinho, nem quero- por isto mesmo não falta gente perto de mim. Não entro naquela do italiano que aconselha: “ Se estiveres sozinho, serás todo teu”. Pra quê? Prefiro me dividir.

EU ME ENTRISTEÇO- Com a perda de pessoas estimadas. Não faço questão de ganhar- mas não faço questão de não perder. E me entristeço quando vejo alguém vitima de injustiça, de humilhação, ou objeto de zombaria. Quando surpreendo alguém com qualidades para vencer e não conseguir- por timidez, por falta de oportunidade ou por falta de sorte. Eu me entristeço com sino tocando (embora seja meu tanto masoquista, goste de ouvi-los).
E me entristeço com tardes de domingo em qualquer canto da terra.

EU LUTO- Sim, desde a escola primaria o Poeta me ensinou que “a vida é combate que aos mais fracos abate. Viver é lutar”. Aprendi a cumprir honestamente meu trabalho. Mas já perdi algumas coisas e pessoas por que, por quem lutei. Agora, faço a minha parte e espero que a sorte faça a sua. Não cruzo os braços, mas não me torturo para alcançar o que pode perecer impossível.

EU ME ZANGO- pouco e bem.

EU DESISTO- Dos que desistem de mim. “Remember” Carlos Queiroz: “ Pois quem não nos quer bem é que nos deixa. E quem não nos quer bem- deixá-los ir”.

EU DOCUMENTRIA PARA A HUMANIDADE- O gênio, num momento de criação.

EU NÃO DESEJARIA PARA A HUMANIDADE- A guerra. Desejaria um mundo sem armamentos, sem aumento de preços, sem ódios, sem invejas, sem marginais. Um mundo em que a palavra paz e amor não fossem apenas uma fórmula.

EU RESPEITO A JUVENTUDE- A espontaneidade, a desinibição, a franqueza.

EU CRITICO - O comportamento de atrito com os pais, quando não de agressão. O desrespeito aos mais velhos ( o reflexo está nas novelas). A falta de gosto pela leitura e ainda mais pela escrita

EU ME ACHO- Pobre de ambição e rico de aspiração. Pobre de dinheiro e rico de amigos. pobre de propriedades e rico de mundo. Pobre de casas e rico de livros. Pobre de juventude e rico de experiência. Bem abastecido de fé, tenho um saldo de esperança que dá para o gasto. Monótono quando estou sem fazer nada. e chato na presença de pessoas que não simpatizo( sou capaz de cair num mutismo de longa duração, se não tiver jeito de sair). Preguiçoso quando devo acordar cedinho, tendo dormido altas horas ( e geralmente durmo tarde: ao silêncio da noite devo os meus melhores trabalhos. A madrugada é meu clima e meu feudo, minha parceira e cúmplice). Esperto, quando tenho uma tarefa a cumprir: não sossego enquanto não a vejo finda. Responsável no exercício dos meus deveres. nos dias de folga, uso a cota de irresponsabilidade que economizei durante a semana, quebro horários e não aceito compromissos. impaciente cm desarrumação e burrice. Paciente com os que trabalho, com os que convivo. Eu me acho mais barulhento do que alegre. Mais alegre do que triste. Mais triste do que rabujento. Não sou lamentoso nem faço praça de reclamante. Estou naquela do chinês: é mais fácil acender uma vela, do que malsinar a escuridão. Eu me acho compreensivo com os que aceito ( porque s aceito simplismente, sem pretender reformá-los) indiferente com os outros, que felizmente são bem poucos. Não me apresento como modelo, me acho consciente das minhas limitações, lembrando sempre da fábula da rã que queria ser boi.

EU GOSTO- De gente, crepúsculo e madrugadas, mar e montanha, cidade antiga, vinho tinto, viagem, música. Gosto de ler, reler e escrever. Sou perdido por uma boa conversa. Gosto da minha casa, meus cantos, minha rua, minha praça, de tudo o que me cerca. Gosto da solidão quando a solicito e a detesto se me é imposta. Gosto de mexer nos meus velhor papéis.

EU NÃO GOSTO - De sapato apertado, coisa quebrada e gente que se alimenta da vida alheia. Não gosto de falsos engraçados. Nem dos pernósticos, dos pretenciosos, os vazios de todos os naipes. Dos que contam como único sucesso o fracasso, a desgraça ou os defeitos alheios.

EU ADMIRO- Os que tem a coragem da verdade. Os que sabem unir talento, caráter e simplicidade. os coerentes. Os leais. Os cultos. Os justos. Os que sabem se impor sem esmagamento. Os que não impurram para passar, os que não derribam para subir. Os que vencem usando a fórmula valor, trabalho, inspiração e transpiração.

EU REJEITO- Os mentirosos, os aduladores, os caloteiros, os pábulas, os fofoqueiros- profissionais ou amadores.

EU VIVERIA SEM- Os acima referidos. Viveria melhor sem a praga de assaltantes que estão transformando a vida num susto permanente.

EU NÃO VIVERIA - Sem as pessoas que eu quero bem. Sem os livros, sem plantas, sem música.

EU VEJO NAS AUTORIDADES - A autoridade. fui criado no princípio do seu respeito. Isto não quer dizer que a autoridade deva ser colocada num pedestal intocável, isenta de críticas, reclamações e protestos. Um governo sem adversário tombaria no plano do niilismo. Só ouvindo a sua "entourage" (geralmente propensa ao "amém") não dá. Como era que um governante poderia tomar conhecimento das suas falhas, se não houvesse quem as apontasse?

EU ENTENDO O PODER - Como uma procuração do povo.

EU NÃO ENTENDO O PODER- Discricionário.

EU SUGERIRIA AOS QUE DETEM O PODER- Que dessem mais segurança aos seus governados e melhores condições de vida aos que estão mais baixo na escala social.

EU PEDIRIA PARA O BRASIL - Vida menos cara e mais tranquila ( insisto no problema da segurança). E a restauração total da democracia.

EU SINTO ORGULHO- Dos responsáveis pela minha presença no mundo e do meu lugar de nascimento. Se tivesse de nascer de novo queria tudo repetido. Gosto de andar por aí e voltar para minha terra. " Em cismar sozinho a noite mais prazer encontro eu cá", com palmeiras ou sem palmeiras, com ou sem sabiás.

EU LAMENTO - Os que sofrem qualquer dor- desde a de cotovelo até a dor de dente, incluíndo as morais que são as mais terríveis. Lamento os frustrados, os recalcados, os vencidos. Porque deles é o reino da vingança, da calúnia e do protesto contra toda a humanidade. Lamento os solitários inconformados.

EU NÃO DEIXO PASSAR -Um momento de alegria ou de sofrimento dos meus amigos, sem estar junto, exercendo a minha solidariedade e a minha participação.

EU NÃO PERDÔO- Eu perdôo mas não esqueço. A vida se encarrega da resposta aos que pretendem me causar algum mal. Já testemunhei algumas delas. Gosto de assistir de camarote o ricochete da bala.

EU ADMITO- O revide oportuno. A vingança não faz o meu gênero.

EU INVEJO- Eu não invejo. Admiro as qualidade e virtudes que não tenho.

EU ESPERO- Viver a vidinha sem mágoa, em paz com Deus e o mundo. Depois, descansar à sombra de um pé-de-jambo, que me aguarda no Parque da paz.

EU SOU FELIZ- Por tudo o que tenho- cidade, pessoas, coisas. Minha conta corrente com a vida está em dia. Ela costuma cobrar tudo o que me dá de bom ( às vezes com juros de agiota). Eu pago e recomeço.
RÉQUIEM

Já foi aurora, foi manhã e foi tarde, agora é crepúsculo, e o homem que assistiu a tudo e não semeou bem está cheio de desespero diante da noite próxima. O homem que só encontrou tempo para se encher de dinheiro e de egoísmo.
Nas candeias do pensamento, queima o óleo do pessimismo devorante e da angústia assassina, usa melancolia no coração inquieto e em torno de si só descobre amargura. Porque não fez amigos nem entre os seus mais seus.
À mesa sentou sozinho porque não interessava a comunicação, mas a gula. E no banquete não confraternizou, mas se satisfez. E ignorou a companhia mais próxima.
À fonte dos desejos compareceu ávido e assíduo, mas cedo a avareza lhe quebrou o encanto, como cântaro da lenda.
Enquanto era sol, não semeou amor e colhe arrependimento. Não cultivou amizade e recolhe desprezo. Não praticou a bondade, nem conheceu a beleza. Foi superficial em tudo, menos no amealhar.
Onde as boas memórias deveriam florir para aquecer seu inferno, só encontra remorso.
Consulta o céu e não enxerga estrelas. Procura a lua cheia e é quarto minguante. Indaga da luz e só recebe a resposta da sombra. Busca o verde e descobre cinza. E, no canteiro de cardos que não foram plantados, nasceu um pé de Solidão junto dum pé de Tristeza.
Aí começa o drama.
Carente de ternura, com lábios queimados de todas as taças, a boca lembrada de muitas bocas, as mãos vazias, o coração enfermo, olha em torno e só encontra uma réplica negativa, uma voz que vem de dentro de si mesmo, na terrível tomada de consciência, que é antes uma profunda auto-acusação retardatária.
Quer voltar, não pode; o tempo impiedoso é irreversível e marcha sempre. Ninguém lhe pode impedir a caminhada ameaçadora dentro da escuridão. Traz no bojo um monstro que se chama medo e que vai ser solto pela boca da noite e vai crescer pelas horas mortas da madrugada.
Na distribuição de sentimentos entre os que o cercam como numa festa de prendas, nem ódio mereceu. Só indiferença. Na hora da classificação, foi esquecido. Porque no instante da decisão omitiu-se. Na hora da escolha, falhou. No momento da palavra solitária, silenciou. Na vez do gesto de ajuda, a mão encolheu.
Nas bodas, foi o Egoísta; na família o Indesejado; nas ocasiões generosas da filantropia o Grande Ausente; nos festejos do congraçamento nacional, o Apátrida.
O homem é o espectro do homem.
A mulher que não suportou a opressão, a vileza e a miséria, partiu.
Os filhos desgarraram, não encontraram o caminho de volta, enjoado e temeroso. Esperam aflitos os momentos da participação.
Amigos não aparecem.
Sozinho, sem mulher, sem filhos, sem amigos, cantar já não sabe, orar nunca soube, ajudar nunca pôde. E a língua que recriminava fácil, que era rápida na acusação e fluente no ataque, está muda. A mão que era leve na punição injusta está impotente. Os olhos indiscretos que humilhavam estão cegos. No abraço egoísta, perdeu o calor do seu próprio corpo. A antiga força é uma sombra vã.
Não ouve, não vê, não fala, não anda.
Aprendeu a chorar, nesta hora do sol posto. Sentado numa arca abarrotada, aguarda a noite que se aproxima com seu cortejo de pavores, carregada de ടെസേസ്പെരോ.
De Relembranças


RICORDAMI

Lembra-te de mim quando ao primeiro anúncio do dia, na hora silenciosa do alvorecer, as árvores paradas, o céu sem nuvem, o tempo, sem cor, uma ave solitária, voltando da noite, cortar o teu caminho

Lembra-te de mim quando, em meio aos teus fazeres, uma palavra te ressuscitar minha presença antiga e te disser que a distância, o espaço e o tempo são bem fracas, abstratas convenções para os que se amam.

Lembra-te de mim quando, à luz do longo crepúsculo da tua terra, um sino te chamar para a prece: cochicharás aos ouvidos de Deus a oração inédita, exclusiva e poderosa pelos que se encontraram e se perderam. Então pedirás por nós.

Lembra-te de mim, uma hora antes da boca da noite, quando te devolveres ao balcão da janela que outrora nos acolhia e testemunhava palavras simples de ternura, que tomavam, nas nossas bocas, a força das verdades eternas.

Lembra-te de mim, quando a madrugada de repente te acordar estremunhada e te roubar o sonho da presença e te trouxer o pesadelo do que é.

Lembra-te de mim defronte ao mar. E lhe ouvirás o mesmo acalanto que nos embalou ao sol da minha terra e escutarás os mesmos cantos de esperança que se afogaram e viraram gemidos e o fizeram mais verde e mais profundo.

Lembra-te de mim à subida da montanha, quando as plantas mais tenras se curvarem à tua passagem e as rosas te saudarem com o mesmo gesto de antiga cortesia.

Lembra-te de mim quando a lua, professora de solidão, te ensinar, o poeta que se fez intérprete da realidade irrecorrível: "uma só pessoa nos falta, o mundo todo está despovoado.”

Lembra-te de mim quando a nossa grata canção voltar ao teu pensamento, repetindo palavras banais que contavam uma ingênua estória de amor.

Ó lembra-te de mim, Amada, quando eu me for definitivamente. E à hora do sol pôr canta por mim, por ti, por nós, a balada derradeira do desencontro.


De A capitoa



A INFÂNCIA PERMANENTE


Tem cada homem de Deus um canto do coração onde guarda sua infância intocada, que de repente rebenta nos momentos mais inesperado. Graves senhores algumas vezes nos surpreendem com reações pessoais puramente infantis- o gosto pela comemoração do aniversário e de receber o presente, o prazer da roupa nova, a felicidade de mergulhar na correnteza do rio, o banho de chuva, a emoção da aprovação num exame, que se renova até quando, já Senhor Professor da Faculdade, enfrenta concurso para catedrático: as preocupações e alegrias são então as mesmas que experimentou quando se submeteu ao admissão ao ginásio.

O menino que fomos continua dentro de nós, grita conosco, chora conosco, ri, se atormenta e se rejubila- e se os cabelos brancos não permitem reagir aos pinotes, pelo pudor natural que a idade impõe, a alma está saltando lá dentro, como nos tempos de antigamente.

Não é bem aquele sentimento de "saudade da aurora da minha vida", não é apenas um derramamento sobre o passado, a lamentação do irreversível, a nostalgia de outrora- é alguma coisa imponderável e inconsciente que se levanta e nos devolve inelutavelmente á infância.

Os medos se repetem. Intrépidos, “valientes”, guapo rapazes, atrevidos na luta, prontos na resposta à agressão, provocadores até, cultivam medo na alma. Bem sei de um, com vocação acumulada para galã e brigão, que não dorme sozinho, quando ainda está sobre a terra algum defunto conhecido. Curioso é que seu medo esbarra no momento em que sabe o finado debaixo do chão. E na curtição do pavor, sente-se desamparado, pede companhia, é capaz de passar a noite de olhos abertos, a luz acesa, reduzido à mais pequena idade.

Um outro conhecido retroage à infância quando adoece. Uma gripe, um tumor, uma alergia, um ferimento, bastam para vê-lo nervoso, com medo da morte- porque assim lhe ensinaram quando era menino- que a menor reima pode conduzir ao cemitério. E o homem, mandão, autoritário, até seu tanto atrabiliário e esmagador, começa a se queixar como uma criança, geme, pede ajuda, apóia, reza- e não sossega enquanto os remédios e as preces não lhe trazem de volta a saúde. E amando, ai, amando, é o homem capaz de todas as infantilidades, que aos olhos alheios podem parecer ridículas, mas são essas as mais puras. Quem nunca amou, atire a primeira pedra. Os que já padeceram e já gozaram dentro do peito as penas e as glórias do amor, sabem que é tudo espontâneo como a chuva e como o vento, como o sol e a madrugada, tudo tão simples, que os pecados por amor hão de merecer, aos olhos de Deus Nosso Senhor, mais piedade e complacência.

Como diz o outro, quem quer bem não tem vergonha. Sim, “ não tem “vergonha”, no melhor sentido, não tem o pudor do beijo, nem do choro, nem do arrependimento, nem do perdão, não hesita em contar males, seus encantos- chora, canta, faz versos, pode cometer todas as loucuras, tornar-se grande ou pequeno, faz-s escravo ou senhor. Por amor se morre, por amor se nasce, por amor se vive, se planta e se colhe, se edifica e se destroi. As grande obras da humanidade foram feitas de amor e sofrimento, tão próximos andam estes dois sentimentos, como gêmeos, como chifres da mesma cabra.

Ora, meu Deus, para que ando eu a gastar papel e tinta, repetindo coisas tão sabidas, que todas as gerações já disseram com mais beleza, com talento, com gênio, engenho e arte, já contaram tudo em música, em poesia, em filosofia- orando, escrevendo, falando, exercendo a viola ou o cantar, nas palavras ingênuas do caipira, na boca do analfabeto ou na linguagem erudita dos sábios.

Fosse recorrer à música popular, teríamos material, já não digo para um livro, uma antologia, mas para toda uma biblioteca. Como era mesmo que dizia aquela cantiga que veio em ritmo de tango, pela mão dos argentinos, lá pela década de 40? Ah, sim: “ “Por ti eu serei doutor, todo um grão senhor, rico e distinguido”. Por “ti, eu serei ladrão, guapo, malandrão, mau e atrevido”. E isto aí. E volto à minha tese inicial: em todas essas ocasiões, na felicidade ou na desgraça, na euforia do álcool ou na angústia do momento difícil, de repente se vê o homem reagindo como ao tempo da sua infância menor, porque o menino não partiu, continua dentro de nós, gemendo, sofrendo, gozando, gritando, pulando, esperando a hora de se manifestar.


Tem cada homem de Deus um canto do coração onde guarda intocada a sua infância.

De A capitoa

sábado, 8 de maio de 2010

PASSEIO COM MILTON DIAS
Por Carlos Roberto Vazconcelos

Foi numa manhã nublada de sábado. Havia chovido durante boa parte da noite e o clima estava ameno. Às oito horas toquei a campainha do número 230 da Coronel Ferraz e ouvi lá de dentro um tô pronto! amigável. Era a voz de Milton Dias. D. Iracema, sua mãe, que morava na casa vizinha, vinha saindo e me recebeu com um sorriso tão doce quanto as guloseimas que sabia preparar. Ele veio de lá, barbeado, elegante, a exalar cheiro de colônia francesa. Aproveitando o aperto de mão, num só gesto, puxou-me para a poltrona da sala comunicando que voltaria em um minuto.
Ali sentado, contemplando os quadros, o bom-gosto dos apetrechos da casa simples, mas aconchegante, foi que percebi que me encontrava na sala onde tantas pessoas importantes haviam sido recepcionadas, auditório de tantos bate-papos, de tanta prosa curiosa e divertida.
Por aquela pequena fração do planeta havia passado ninguém menos que Jorge Amado, Jean Paul-Sartre e Simone de Beauvoir. Aquelas paredes serenas testemunharam a prosa inteligente de um Moreira Campos, de um Antonio Girão Barroso, de um Lustosa da Costa...
Sábado é o dia preferido de Milton Dias para as prazerosas rondas pelas livrarias e sebos do Centro. E naquela manhã, eu teria o privilégio de acompanhá-lo.
As árvores frondosas que torneiam a Escola Normal estavam repletas de vida e os passarinhos (talvez os bisavós ou tataravós destes que vejo hoje) estavam mais festivos do que nunca, alvissareiros, trabalhando e cantando como o carreteiro de brim azul que hoje passa, rumo à Governador Sampaio, empurrando seu carrinho e assobiando um samba romântico. Esse não se deixou engolir pelas agruras modernas.
Saímos a pé. Começamos nossa andança pela Rua dos Pocinhos. Na esquina ele parou, olhou para os lados, para cima (como quem examina se vai chover), observou o movimento em volta, fez uma cara de resignação e comentou: Esta ex-tranqüila Rua Coronel Ferraz aos poucos vai nos despejando. Tocamos em frente. Ele preferiu dispensar seu fusquinha, alegando não existirem mais estacionamentos na cidade e deu-me a primeira lição: Você já experimentou andar pelas ruas de sua cidade com olhos de turista? E me ensinou a examinar as platibandas, a pescar as últimas balaustradas que ainda existem, a imaginar o que havia no lugar daquela loja que vai emergindo dos escombros de outro tempo, alavancada pela força do dinheiro que ergue e destrói coisas belas.
Cruzamos a Governador Sampaio, a Sena Madureira, a Rua do Rosário. No percurso, um aceno, outro aceno, um leitor o cumprimentou pela crônica do dia anterior, duas estudantes pediram autógrafo, um conhecido quis um dedo de prosa. Seus olhos sempre atentos perscrutavam. Os detalhes da cidade lhe faziam bem. Disto colhia matéria-prima para as suas crônicas.
Alcançamos a Praça do Ferreira, o ponto por ele mais amado. Lamentou a falta dos quiosques em cada esquina, entre eles o Café Java, o desaparecimento dos cinemas Moderno e Majestic e a saudade dos bondes sonolentos gemendo em cima do trilho. Fomos direto ao Leão do Sul. Entre um caldo de cano e um pastel ele me disse: Para conhecer bem qualquer cidade do mundo, é preciso andar de ônibus, ir ao mercado, ao cais do porto, conversar com o garçom, o barbeiro, o engraxate, o ascensorista. Assim você terá uma média do que pensa o povo dessa cidade, como ele vive, mora, sofre, come e trabalha. A questão é saber descobrir. Dizia tudo isso com naturalidade, sem ar professoral.
Entramos em duas livrarias. Ele comprou, se não me falha a memória, um dicionário de francês e o livro de um autor conterrâneo. Achamos, embaixo de um Benjamin, um daqueles bancos anatômicos da velha praça, tão lembrados em suas crônicas. Ali, ele fez uma concisa mas brilhante e regalada explanação sobre autores franceses, citando principalmente Proust, Victor Hugo e Sartre. De vez em quando algum conhecido o interrompia, cumprimentando-o efusivamente. A cabeça totalmente calva chamava a atenção.
O relógio da coluna bateu doze horas. Ele se apressou e, para minha surpresa, pois já estava dando por terminado nosso passeio, disse: Vamos, vamos que a D. Iracema já deve estar com o almoço em cima da mesa...
Em certa altura da caminhada de volta, quando o silêncio quis se instalar, como acontece nos primeiros encontros, disse, em tom brincante: Menino, eu venho dos verdes campos do Ipu, onde pontificava “a guerreira tribo da grande nação Tabajara”.
Não deixei por menos e emendei, usando o mesmo Alencar: E eu venho de Tianguá, que fica no topo daquela “serra que ainda azula no horizonte”, embora minha mãe não se chame Iracema. Seremos aparentados? Pois também sou Vasconcelos. Você do pé e eu do cabeço da Serra.
Ele sorriu largamente da minha astúcia e deu-me dois tapinhas nas costas: Somos, os três, conterrâneos.
Para depois do almoço estava reservada a última surpresa: a oportunidade de conhecer a sua rica biblioteca. Quando nos despedimos já eram quase dezesseis horas. À noite o cronista teria compromissos com os amigos e a Sra. Boemia. Autografou-me o livro Cartas sem Respostas e eu, não podendo ser recíproco, entreguei-lhe um calhamaço, fruto da minha pena sofrível, que ele prometera ler e responder. Estava alinhavada uma amizade que só terminaria com a sua morte, numa manhã de 22 de março de 1983.
No dia seguinte, os jornais choravam em prosa e verso a perda dessa grande alma. Mas ele permanece vivo no coração dos amigos. Milton era um exímio palestrador. Quem duvidar que leia as páginas que ele nos legou, retratos fiéis de seu espírito iluminado.