SEMPRE MILTON DIAS

José Milton de Vasconcelos Dias (*29-04 1919 - Ipu - CE; +22-03 1983 - Fortaleza - CE ).

Após iniciar os estudos na cidade de sua infância, Massapê, vem para o Colégio Castelo Branco em regime de internato.

A experiência da infância em meio à paisagem sertaneja, seus mitos e ritos, lendas e cantorias, foi fundamental para a formação de sua sensibilidade criadora, uma vez que despertaria, no futuro cronista, a inclinação para o lirismo, o poético.

No Colégio Marista Cearense, onde realizou os estudos secundários, descobriu, em definitivo, a vocação da escritura. Sendo fundador dos jornais ´O Ideal´; e ´Alvorada´.

Em Paris, cursou os Estudos Superiores Modernos de Língua Francesa e Literatura Francesa.

O Governo francês o condecorou com a Ordem das Palmas Acadêmicas.

Foi professor de Língua e Literatura Francesa no Curso de Letras da UFC.

Bacharel em direito (1943), Letras (1966), professor secundário no CE e SP, tradutor, diplomado em letras neolatinas. Cursou Faculdade de filosofia. Técnico educação UFCE, secretário UFCE, contista, cronista, ensaísta, orador, jornalista, fundador e membro do Grupo Clã-movimento renovador das letras cearenses. Membro da Academia Cearense de Letras- cadeira nº 4- e Associação Cearense da Imprensa.


segunda-feira, 28 de junho de 2010

Madrugada I

É madrugada, a última deste mês de setembro, e eu mergulho nela sozinho, numa sala pequena, dentro do silêncio grande, que o apito dum guarda desrespeita de vez em quando – e cumpro cautelosamente mais uma insônia, entre lembranças velhas e novas. Uma dessas, a mais antiga, vem dos longes da infância, ainda ao tempo das trevas que a luz elétrica só dissipou muito depois, em Santana do Acaraú: um carro atravessa lentamente a praça enorme da igreja velha, com os faróis queimando a noite jovem – e, de dentro dele, uma bonita voz de homem, voz anônima, forte, lírica, perdida, solta, derrama uma despedida dramática certamente dirigida à bem-amada que o devia escutar soluçando de alguma janela: “Eu vou pra bem longe de ti saudosamente / Adeus minha querida / Querida Guiomar / Adeus, eu vou partir, vou pelo mar.”

Quem seria aquela mulher (seria uma mulher ou apenas uma rima?). De quem seria aquela voz que só ouvi uma vez e me transmitiu uma imensa vontade do mar, meu desconhecido, uma grande nostalgia das distâncias, dos mistérios do mundo, deixou-me a imaginação indócil, enquanto o carro, levantando poeira, desaparecia na rodagem, exatamente ali onde um pé de resedá marcava a curva do caminho? Onde andará aquele cantor? Aquela moça onde andará? Será que se uniram?

Acabo de ler um trecho de diário alheio e fico pensando que a leitura dos diários me comove mais do que as autobiografias ou as biografias, me parece mais verdadeiro este registro cotidiano dos acontecimentos, dos pensamentos, dos sentimentos – as penas e alegrias, as depressões, as angústias, as vitórias, os fracassos, os amores – tudo posto ali com uma coragem impressionante, os momentos mais íntimos, as horas difíceis, os pequenos dramas, as covardias, os heroísmos, as emoções de cada dia, os medos, os ódios, os ressentimentos, tudo confiado ao papel. E chegada a página final, a pergunta amarga, inevitável – será que valeu a pena registrar assim, minuciosamente, conscientemente, uma vida toda, para depois entregar tudo ao respeitável público (nem sempre respeitador), como quem se desnuda no palco?

E vem outra reflexão tácita – a de que aquele que escreveu o Diário, que também teve fome e sede, que conheceu glória e humilhação, que sofreu ambições e se frustrou em muitas delas, e se realizou em algumas, aquela vida que está em minha mão, escrita no papel frio, repousa agora debaixo do chão, já resolveu todos os seus problemas e conflitos terrenos, dorme em paz com Deus. Abro por acaso uma das páginas, vejo uma preocupação momentânea que o martirizou tanto e que agora parece tão mínima!

Penso que daqui a pouco será outubro e fico triste. Outubro não me agrada, nem é começo, nem meio, nem fim de ano, o mais antipático de todos, poeirento, calorento. Nele perdi meu pai, nele perdi um amigo – é certamente o que mais me tem cobrado apreensões e sofrências.

As paredes desta sala onde me encontro foram testemunhas de outras insônias e as mãos dos que as fizeram levantar já estão vazias definitivamente. Esta mesma pequena sala que agora abriga um homem insone já recebeu noivos para as comemorações e cumprimentos, já acomodou o corpo morto do seu dono, esta sala ouviu conversas e queixas, discussões, esperanças e prantos. A casa toda, em que estou absolutamente só dentro da madrugada, já foi povoada de muitas vozes e de muitos passos de jovens e velhos que desapareceram carregados pela morte ou levados pela vida.

Há um silêncio respeitoso e tranqüilizante envolvendo, purificando o mundo, velando, protegendo o sossego e o sono, um silêncio discreto que esconde o que agora ocorre nas sombras protetoras. Quem sabe, alguém está se matando neste momento, alguém deve estar amando neste minuto. Tem gente chegando, tem gente partindo, a esta hora a população está crescendo. Ou está diminuindo?

Abro um instante a janela, consulto o céu: não há uma estrela, fugiram todas, me deixaram no mais completo abandono. Nem posso imitar o poeta que conversou com elas toda a noite, tresloucado amigo.

Agora um galo solitário solta um grito precursor, distante – será mesmo hora de cantar anunciando a aurora, ou será um galo tresmalhado, desinsofrido? Olho o relógio, são duas horas da manhã, concluo rápido: aquele também está sem sono – e canta.

Um latido inesperado de cachorro se levanta aqui na Praça da Escola Normal. Será um protesto ou um apelo, uma queixa ou uma denúncia, um lamento, um convite ou apenas a voz dum cão que não dorme?

Escuto religiosamente os silêncios e as vozes da madrugada – enquanto a minha rua dorme, eu guardo, sozinho, de olhos acesos, a insônia fecunda.

De Entre a boca da noite e a madruga – 1971

segunda-feira, 21 de junho de 2010


Salmo do Homem Só

Senhor, tende piedade dos Sós.
Mandai Senhor, para o Homem Só, a mulher conveniente, a que se resigna às recomendações da Carta de São Paulo aos Efésios, a que seja amante, esposa, irmã e companheira, submissa e terna, a que tenha a humildade das mulheres bíblicas e a grandeza e a coragem de todas as que souberam se sacrificar pelo Bem-Amado.
Mandai, Senhor, para o Homem Só, a mulher compreensiva e laboriosa, mandai a doce mulher exclusiva, parcimoniosos e amiga, aquela que seja feitas à imagem de Marta, à semelhança de Maria, a que tenha de Sara e Ruth, a que não gurde no seu sangue nenhuma lembrança de Salomé, nem de Atália, nem de Jezabel.
Mandai, Senhor para o Homem Só, a mulher certa.
Da falsa loura, imprudente, impiedosa, cansativa a caluniadora, livrai-nos Senhor.
Dai-nos a outra, a de cabelos dourados e olhar azul-mediterrâneo, a silenciosa, a de alegria discreta e constante, a que sabe esperar, a que sabe escolher, a que sabe acolher, a que receberá o Homem Só como seu Messias.
Da morena copiosa de olhar víbora, aliciante como o das serpentes, daquela que atraiçoa com encantação, da que esconde o veneno na boca do sorriso, daquela que mistura mel com hipocrisia, livrai-nos senhor.
Dai-nos a outra, a morena que tem beleza das mulheres trigueiras do Cântico dos Cânticos, a que pelo Bem-Amado se submete a todas as penas, a que o espera sem contar as luas, a que é fiel por atavismo, adorável e amorável pela própria natureza. A que não conta as léguas do caminho para o encontro, a que não respeita nem o sol, nem a chuva, nem o vento para o encontro, a que chora pelo encontro, a que ora pelo encontro, a que ri pelo encontro.
E no encontro é a mais feliz, a m ais suave, a mais felina, a mais amorenta, a mais humana de todas as mulheres. A que aprendeu a dar a cada minuto a força da eternidade, a que esconde lágrima, a que esquece queixa a apaga sofrimento, a boa, a bela, a generosa mulher morena.
Da mulata traidora vocacional, daquela de sonhos impossíveis de palco e passarela, de câmeras, refletores e aplausos, da que deseja o largo mundo, a cidade tentacular, os caminhos dos pássaros, o mar grande, as glorias espaciais, livrai-nos, Senhor.
Dai-nos a outra, a simples, a que veio da melhor miscigenação, a que trouxe do caldeamento a franqueza branda, a dignidade sem orgulho, a fidelidade sem alarme, a modéstia sem ostentação, o amor tranqüilo, feito de verdade e de renuncia, amor constante, sincero e fecundo. Aquela que traz na voz a quentura e a nostalgia das três pátrias ancestrais e, no gesto e nos meneios, a graça de muitas gerações, a que traz nas mãos promessas nunca reveladas, a que esconde no olhar a receita da atração que se vem transmitindo intata a todas as mulheres da sua cor tão especial.
Da preta graciosa e demoníaca, daquela trêfega, insinuante e ciumenta, que disfarça nas blandiciais da voz africana os sortilégios insuspeitos das estranhas forças da sedução que conduzem ao mal, livrais-nos Senhor.
Dai-nos a outra, a descendente em linha reta da mãe preta, herdeira das cantigas de ninar, a que guarda segredos culinários e ternuras quentes, a que carrega musica na alma, leveza no corpo, volúpia nos olhos, a que labora e ajuda, a que se dá sem pedir cambio, aquela que nasce por amor, a que vive, a que morre por amor.
De todas as outras, Senhor, as que não queremos ver do corpo nem pensamento, as amargas, as tristes, as infiéis, as hipócritas, as impudicas, as inimigas, as loucas, livrai-nos, Senhor. Dai-lhes muitas alegrias, concedei-lhes a paz, a prosperidade, a boa sorte e as conservai longe de nós.
Mandai, Senhor, para o Homem Só, a mulher certa.

De Entre a boca da noite e a madrugada, 1971





Entre a boca da noite e a madrugada, muita cidade passou, muito caso eu aprendi, muitas pessoas ganhei, outras tantas eu perdi, vi gente de toda sorte, gozei encontros com a vida, sofri encontros com a morte.
Muita angustia foi calada, muita mágoa foi oculta, muito caminha andado, muito sapato acabou, muito custou aprender no grande livro do mundo.

Tanta surpresa encontrei nos olhos do mau vizinho,, tanta traição morava na mão que bondosa vinha, tanta pérfida intenção por trás da palavra amor, às vezes desinlusão trazia o nome do amigo, tanto fogo já pegou no meu embornal de sonho, tantya rosa ficou murcha, tanta mulher me queimou, tanto verso se apagou, tanta prece foi rezada na hora aflita da dor.

Tanto pôr-de-sol guardei, tanta noite não dormi, tanta insônia cultivei, madrigada apascentei, muita aurora atocaiei, muitas estórias ouvi, algumas delas contei, outras tantas escrevi.
Tudo, entre a boca da noite e a madrugada

Entre a boca da noite e a madrugada tudo aumenta – o amor, a paz, o sono, o sonho, o silencio, o ódio, o mistério, o medo, a população.

De Entre a boca da noite e a madrugada, 1971

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Geralda

De como apareceu não digo porque não sei – nunca me foi contado nem eu perguntei: quando a conheci em Massapê, já foi feita criada na casa de pessoa do meu sangue, encarregada dos serviços mais grosseiros, pois em tudo mais era um desastre completo: quebrava a louça, nunca acertou um ponto do arroz e, nessa fase dolorosa da experiência culinária, mais duma vez deixou queimar o feijão. Também para recado era imprestável, burra, meio gaga, atordoada. Ah, sim, atordoada, é bem o termo. Incapaz de reproduzir uma conversa, de contar o fato mais simples sem estropiar as palavras e sem deformar a estória.

Não tinha ninguém de seu mundo e dessa orfandade ela procura tirar partido, falava frequentemente como quem se gaba da desgraça, pleiteando prestígio. E desarrumada, feia, suja, zambeta, situava exatamente na linha fronteiriça da loucura.

Chamava-se Geralda – e quando andava pelos dezoito anos (nunca ninguém lhe soube a idade exata), fugiu de casa e o fez tão surpreendentemente bem, que não deixou pista – pois se é certo que a inteligência lhe faltava, a astúcia acudia sempre. Há quem malde que foi insinuada por algum sedutor barato, que lhe teria ensinado o velho truque de entrar no trem e se esconder no banheiro, enquanto o comboio não dava partida. Outros acham que se mandou mesmo a pé.

Passou-se, passou-se, teve-se uma dita noticia dela aqui perto, em Maranguape, exercendo a profissão de guia de cego. E como seu destino era mesmo Fortaleza, não deu muito tempo aportou aqui e acabou batendo, por acaso, na porta duma irmã da senhora que a acolhera na infância vadia e donde fugira sem deixar sinal.

Aí resolveram admití-la, não sei bem se por bondade, ou se por algum disfarçado interesse, numa faixa em que a safra de cunhã andava seu tanto vasqueira. O fato é que ficou (certamente animada pela fome) – e como já sabiam que não era de muitas virtudes, nem de grande engenho, foram-lhe dando as tarefas mais condizentes com a sua incompetência.

O ensinamento paciente da patroa conseguiu alguma coisa, melhorou a aparência e chegou a habituá-la ao uso regular do pente, naquela cabeleira rebelde de modelo black power. Sim que não era preta, nem branca, nem mulata – era melada, alvaçarenta – sei lá, daquela cor indefinida de terra, dum amarelo macerado e doentio. Um dia, que foi ao centro da cidade, a colega que a levou resolveu lhe dar de surpresa e de presente um copo duplo de caldo de cana. Tivesse Geralda mais sensibilidade, imediatamente se teria sentido devolvida aos pagos antigos, pois também, ao que vagamente se sabe, vivera nos primeiros anos ao pé duma moenda, em casa de engenho.

Quando tomou a primeira golpada, a outra, que tivera a idéia generosa de brindá-la com bebida que lhe deveria ser muito grata ao paladar, perguntou se estava gostando. Geralda interrompeu o gole, estalou a língua como quem aprova, à procura de identificar o que bebe, saiu-se inesperadamente com esta: – Na minha mente eu já bebi isto! Ao que a companheira, obviamente desapontada, informou: – Menina, tu conhece demais. Isto é garapa de cana. E Geralda: – Lá vai. Cadê o cisco? Cadê o cisco?

Mais cedo do que se esperava, deu-se o inevitável: caiu de paixão por um preto que se dizia aprendiz de carpina, virtuoso consumidor de cachaça, contando no seu trêfego currículo algumas entradas na polícia, uma delas na baderna no Forró da Loura. A patroa, de velha formação moral e religiosa, testemunhando a avanço rápido da barriga da “ingênua seduzida”, resolveu promover o casamento. O que, aliás, não foi difícil: Chico (era assim que tratavam o demônio do preto) concordou tranquilamnte e comemorou o matrimônio com uma carraspana heróica. Tudo arranjado resolveram devolvê-los ao sertão e embarcaram os dois, dignamente, de ônibus, para Massapê – pois queriam ir mesmo para o interior e já os tinha engajado, a distancia, nos trabalhos duma pequena propriedade.

Foi lá que encontrei Geralda. Estava mais magra, aparentemente alegre, curtindo luto num vestido preto novo, em honra ao finado marido. Coitado do Chico, teve doença longa e morte lenta. Quando agonizava de madrugada, Geralda pediu, oportuna e comodista: – Chico, tu vai morrer agora não, que eu tou morta de sono. Tu não vai morrer agora não, viu? Nisto cochilou e, quando abriu os olhos, Chico tinha fechado os seus, definitivamente. Já era com Deus.

Pois um dia deste, lá mesmo em Massapê, chegou a dita Geralda na casa da primeira patroa, usando a máscara oficial do desespero, os olhos saltados, a fala impossível pelo cansaço da corrida, os gestos desgovernados. Derramou-se numa cadeira, chorando choro alto, incapaz da explicação mínima.

Depois de muita instada, conseguiu falar aos tropeços, entre soluços intermináveis: – Eu acho que matei minha sogra. Taquei-lhe o pau na cabeça, que o mel correu. E, no mesmo tom, como se viera ali só a isto, pediu aflita: – Pelo amor de Deus me arrume um copo de café-com-leite.
Curioso é que se acalmou de repente (donde se conclui que café-com-leite é mesmo tranquilizante para quem tenta matar sogra) e já de tardinha, por imposição de todos, foi obrigada a voltar pra casa: tinha que ver pessoalmente o que de fato ocorrera.

Apareceu dois dias mais tarde e, quando lhe pediram notícia da vítima, informou debicante e gaguejante: – Aquela vea lá morre. Ela queria era me fazer medo. Só uma pancada de pau e uma rachadura na cabeça não dava pra cair ciscando no chão, como quem dá ataque. Tudo pra se mostrar. Era só amostração.
Pior é que andam falando mal dessa dita Geralda. Como é que pode?

De Outras cunhãs, 1977

quarta-feira, 16 de junho de 2010


De: Milton Dias
Para: Pedro Salgueiro *
Nós, os carecas

Amados irmãos que já estamos despojados da nossa saudosa cabeleira, conformemo-nos: nosso mal é mesmo sem remédio. Domingo passado um programa de televisão deitou impiedosamente a última pá de cal nas nossas vagas esperanças e nos conduziu à lamentável conclusão de que nunca mais usaremos pente, nem brilhantina, não mudaremos de penteado, nem contaremos os fios de cabelos brancos que vão apontando como marca indelével do tempo. Ficou mostrado que não adiantam remédios, nem loções, nem pomadas (lembram-se daqueles tônicos de nomes sonoros anunciados como milagrosos, que abriram muita ilusão?), pois é, não vale a pena tentar massagens, meizinhas, nem raízes, nem rezas. O mais lógico, o mais sadio e mais saudável é assumir a careca, é abrir o jogo corajosamente, conscientes de que a queda não nos atinge a personalidade, não nos faz falta, nem diminui – e ainda nos resta o consolo de que estamos em muito boa companhia: é impossível contar o número de escritores, poetas, filósofos, cientistas, artistas, de altos nomes da indústria, do comercio, da política que já estão de cabeça pelada – basta passar uma vista nos auditório de congressos nacionais e internacionais.
E ainda mais – temos expressivos representantes no cinema – aí estão Yul Brynner e Telly Savalas, o Kojak, que não me deixam mentir, brilhando nas telas, aceitos e festejados como símbolos da masculinidade, arrebentando jovens corações que lhes fazem aquelas mesmas eternas juras de amor que foram feitas a bonitões cabeludos. E na televisão, no teatro, no cinema brasileiro, Raul Cortez (agora casado com Tânia Caldas, considerada uma das mulheres mais bonitas do Brasil), estão Ítalo Rossi e Cecil Thiré.
Colho animadora notícia numa revista dos Estados Unidos: recentemente estatísticas americanas revelam que os carecas são fascinantes aos olhos femininos. A grande maioria das mulheres prefere os calvos – diz lá a nota. E como se não bastasse, a estatística garante que é raro encontrar um homem sem cabelo que não tenha situação econômica bem acima da media. Outra revelação importante é a de que os carecas são bons maridos, são poucos sujeitos a doenças do coração e males do estômago. Acrescento aqui uma informação do professor Murilo Martins, que tantos anos trabalhou em hospitais americanos: lá chegaram à conclusão, também apoiada em estatística, de que careca não tem câncer do pulmão. Pelo menos deste, nós estamos livres.
Nos meus tempos de menino, no interior, conheci um senhor que mesmo em casa conservava o chapéu, para esconder a superfície craniana – e por esta mesma razão deixou de ir à igreja onde, obviamente, teria que se descobrir. E era pai de família numerosa, homem que já dobrara a faixa dos cinquenta, já conquistara o que tinha de conquistar, estava bem abastecido de filhos e netos, não tinha motivos para guardar grandes ilusões no plano donjuanesco. E ainda que os tivesse, seria ridículo desistir do bom combate só pela falta de cabelos: infeliz de quem depende deles para conquistar uma mulher – é o mesmo que subestimar outros valores, reconhecer a ausência de qualquer encanto, é o mesmo que desmerecer a inteligência, o charme, a boa conversa, a bondade, a personalidade.
Uma jornalista inglesa, Jill Butterfield, conta que na época de guerra, quando trabalhava lotada numa cantina da região de Gales, conheceu um ferreiro alto, forte, um verdadeiro gigante, que passava horas e horas cavando um quintal minúsculo. Quando voltava do acampamento, encontrava-o com as costas brilhando ao sol, curvado sobre as flores que lhe ocupavam todo o tempo livre. Depois tornava ao banho, vestia uma camisa limpa e vinha tomar chá na cozinha, onde a esposa o esperava. A jornalista passou a prestar-lhe mais atenção quando notou que o homem nunca tirava o pequeno boné, nunca i vira de cabeça descoberta. Até uma noite em que foram bombardeados, desceram juntos para o mesmo abrigo, o boné caiu e ela descobriu que seu amigo ferreiro era calvo como uma bola de bilhar. No dia seguinte – continua Miss Butterfield – depois que o amável gigante saiu para a oficina, sua esposa contou-lhe que ele tinha enorme desgosto de ser calvo. E acrescentou: – Coitado, não acredita nunca que foi isto que me enfeitiçou. Faz uma pausa, refletiu, soltou a confissão lá na sua língua, que pode ser assim traduzida: – Desde mocinha me amarro em careca.

O psicólogo norte-americano Bernard Perkins declarou que a calvície é o índice mais seguro de inteligência masculina – o que um poeta nosso comentou nesta quadra:
Para os carecas do mundo
Traz a notícia um consolo:
Por fora – pouco cabelo
Por dentro – muito miolo.

Vai também aqui esta “Ode a um quase calvo”, não sei de quem:
Ontem, hoje e amanhã
O homem o cabelo parte
Parte o cabelo com arte
Até que o cabelo parte.

Em outubro de 1974 apareceu no mundo a noticia de que um composto de silicone no pelo das cobaias, teve por resultado que tais pelos cresceram tanto, que com eles foi possível fazer tranças. Isto aconteceu no instituto de Química Orgânica de Irkutsk, na Sibéria. O novo produto se chama Mival, em homenagem aos cientistas que o criaram – Mikhail Voronkof e valery Dyahov. Foram feitas experiências em seres humanos e se anunciva com reservas que os resultados tinham sido promissores. Tudo indicava que o silicone seria brevemente um bom restaurador de cabelos humanos. Qual nada, já lá se vão oito anos e não se TVE mais noticia – prova de que o medicamento não funcionou.

Comentando o fato, na época, conhecido cronista brasileiro, imaginando as reações que ele suscitaria, identificou dois tipos de carecas: – o neurótico e o conformado, esclarecendo: “O neurótico é aquele que faz tudo para disfarçar a calvície, razão pela qual sua hipocondria se circunscreve à caixa craniana. Não deixa de comprar qualquer remédio anunciado como capaz de fazer milagres nesse setor. Submete-se a massagens, penteia-se cuidadosamente de modo a esconder o avanço da calvície, sonha com o implante capilar. O outro tipo não dá muita bola para a aparência exterior. Quase sempre é necessário que algum gaiato lhe grite na rua:” ô careca” para admitir finalmente que anda com entradas de testa muito pronunciadas”. Para mim, o pior deles é aquele que deixa crescer fio de cabelos nos lados e os atravessa pelo meio da cabeça de ponta a ponta, de orelha a orelha.

Bem, eu faço parte do grupo dos conformados, já estou com a careca bastante calejada, muito batida, muito acostumada ao sol e à chuva e aos comentários indiscretos das crianças, que quando me vêem a primeira vez não deixam de observar: – Olha, papai, este homem não tem cabelo. Ao que o pai, constrangido, tirando um pouco sobre a aflição, com medo de ofender, impõem silencio. Aí o garoto insiste: – Tem não, papai. Pode olhar. Não tem nenhum fio.
Aos colegas veteranos carecas não tenho, evidentemente, conselhos a dar. Mas aos que vão começando agora a carreira, eu lembro que na hora da depressão maior recorram à marchinha carnavalesca que fez tanto sucesso aí pelos idos de 40 – “Nós, os carecas/ Com as mulheres somos maiorias/ Pois na hora do aperto/ é dos carecas que elas gostam mais”. E se tiverem dinheiro, compareçam àquele congresso internacional dos carecas, que se realiza todos os anos na França.

Se estes consolos não baterem, peguem estas palavras e reflitam na sua sabedoria: “A grande vantagem da calvície é que deste modo ninguém nos insultará os cabelos brancos”
De A Capitoa – 1982
* Grifo do autor do blog


Tarde na minha praça

Agora eu digo como o velho Cardeal Gonzaga: “tão simples tudo”. E tudo tão bom, tão calmo, tão bonito, tão puro como a benção de Deus Nosso Senhor. São duas horas da tarde duma quarta-feira e um sol radioso ilumina a minha praça, um vento vadio que nasce no mar vem cochichar nos cabelos da moça de vermelho que passa displicente aqui na calçada. Um céu de claro azul, igual, nos cobre agora, sem uma nuvem. Não, minto: ponho a cabeça na janela, alongo o olhar, vejo que por detrás da Escola Normal elas se juntam brancas, paradas como nuvens de papelão. Certamente dentro de algum tempo, comboiadas pelo vento, desfilarão aqui em cima da minha casa.
Quem vê, diz que o sol saiu deitando cor na terra, foi ele quem fez o verde mais verde, o amarelo pálido do telhado defronte está quase abóbora, a grama ganhou brilho, até o capim ralo, a vassourinha verde que nasce e cresce por conta própria, parece mais alegre. Aquele verde desbotado pegou vida. Flores não há, infelizmente. Onde estão as flores desta cidade? Houve tempo em que as havia nos jardins públicos. Se há os que não amam as flores, deve haver os que gostam e cuidam delas. Por que a Prefeitura não cria uma guarda municipal para se ocupar dos canteiros que mandaria plantar? As pacaviras exigem tão pouco, as boa-noites não exigem nada. Até as papoulas são modestas, pedem mínimo.
Tão simples tudo. Um homem dorme tranquilamente, aproveitando a sombra do caminhão, dorme debaixo, é talvez o ajudante que guarda o carro e aproveita a sua proteção, dorme numa atitude de sossego absoluto, tão sem problema, nesta hora em que banqueiros se preocupam com cifras, agiotas ambiciosos protestam letras e industriais discutem a produção das suas fábricas e autoridades se inquietam com o que lhes foi confiado para governar.
Enquanto aquele homem de camisa verde repousa no chão sua pobreza tranquila, na bolsa de valores esperanças crescem e morrem; por toda parte, investidores contam dinheiro, vendedores vendem ações, há cobradores que vão de porta em porta ao sol de junho. Uma criança está nascendo, um homem está morrendo, um automóvel come o asfalto a toda velocidade, o mundo inteiro está rolando, correndo, lutando, sofrendo, amando, odiando.
Nesta mesma hora, alguém parte, alguém chega, há um preso que aguarda julgamento, um outro que espera o inquérito, um homem que mata por ciúme, uma mulher que morre por amor, uma criança desidratada espera a morte ou a salvação, um mendigo pede a sua esmola, alguém está sendo ofendido, alguém está sendo louvado, um que manda, um que obedece, um que protesta, um que perde, um que ganha.
Debaixo da minha janela um grupo ruidoso de meninos joga uma pelada violenta – são não sei quantas vocações de Pelé, que disputam a pelota. São os mesmos que me tomaram a sesta e, não faz muito tempo, fizeram gol dentro da minha casa, a bola atravessou as traves da janela, foi bater no segundo quarto. Por um triz não acertou na minha cabeça indefesa.
Tão simples tudo. Já houve outras tardes assim, há muitos anos e eu não podia desfrutar, preso numa sala de repartição, sofrendo o calor da parede de granito, do lado do sol, escrevendo um livros imensos, ou redigindo ofícios e relatórios, às voltas com o insuportável linguagem burocrática. Já houve outras tardes assim, eu sei, noutros lugares, em muitas idades, tardes de fins d”água, tardes da minha infância sertaneja, tardes de adolescência sonhadora, tardes da juventude, inquieta, em meio à alegre espera dos festejos dos santos de junho, tardes de ontem, tardes de outrora. Ah, quantas tardes perdidas.
Não é hora de cismar, eu sei. Mas esta tarde me devolve compulsoriamente a lugares em que vivi, às tardes que não se abriram para os meus olhos como esta de hoje, porque a bruma as envolvia. Penso na viagem que não fiz, na mulher que não me quis, no filho que não foi gerado, no verso que não compus, na canção grata, na amiga morta, no amigo morto, no outro tresmalhado. Penso no amor sem começo e sem fim, na paixão que o tempo comeu e que a distancia apagou. Penso no meu cavalo de sela, pequeno, pardo, dos tempos de menino, que um dia venderam e me deram em troca um cavalo branco, malhado, grande, um horror de cavalo, desobediente, de estrada dura e galope traiçoeiro. Comércio de cigano.
São duas horas da tarde, eu disse. E a nota lírica do momento na minha praça é aquele de namorados sentado num banco, à sombra do oitizeiro, numa atitude gostosa, tão bela, tão jovem, a eterna, universal atitude dos que se amam, os olhos nos olhos, a mão do moço acariciando os cabelos pretos da menina morena. Em torno deles, o mundo não existe, nem o sol, nem o céu, nem as pessoas que passam, nem as crianças que brincam, nem o homem que dorme, nem os carros que correm, nem as dívidas, nem as dores. Há uma ternura imensa naquele beijo que daqui eu surpreendi, há uma jura de amor, de esperança, de coragem, um toque de eternidade, naquele beijo que eu vejo e nem ouço. Há uma beleza que ninguém saberá contar em verso ou em prosa, neste quadro que a minha janela emoldura – e dentro dele o amor no banco da avenida, à sombra do oitizeiro. E a paz e o sono à sombra do caminhão. A tarde tranquila parece eterna.

De Fortaleza e eu – 1976

segunda-feira, 14 de junho de 2010


Sino meu irmão

Tem sinos dobrando por nós.
Pelo que passou, pela nossa infância, pela juventude, pelo amor perdido, pelo amor não vindo, pelo pai que é morto, pela eterna noiva, pelo falso amigo, pelos que partiram sem se despedir, pelos que não voltam, pelos que se foram para o grande mundo. Pelo antigo outrora, pelas folhas, pela verde aurora que o sol, seu amante, cedo apascentou. Pelas agonias, pelos sofrimentos, pelo velho corpo e pela alma enferma que ninguém curou. Pela noite amarga, pela madrugada que a manhã levou.
Tem sinos dobrando por nós.
Té parece gente: têm voz de criança, têm voz de mulher, têm voz de ancião, têm voz de guerreiro, têm voz de cantor, têm voz de sereia, têm voz de escravo, tem voz de senhor.
Depende da hora, depende do toque, depende, também, da mão do sineiro, que é seu companheiro, que toca na corda, como um caminheiro, como o menestrel que canta pra amada seu canto de amor.
Tem sinos plangentes, tem sinos cantantes, tem sinos da boca da noite, tem sinos falantes, tem os penitentes, que são como crentes, cumprindo oração. Tem sinos pequenos, tem sinos meninos, tem sinos que crescem, viram carrilhão.
Oh sinos aéreos, voando alto, pra lá e pra cá, gritando lá em cima de abstratas torres. Os sinos vigias, oh sinos pastores, quantas são as dores do vosso cantar? Sinos que badalam, sinos que embalam, sinos que nos falam, por que sois tão maus? Por que nos lembrais que os tempos vividos são como usurários, cobrando lembranças em vãos campanários?
Por que nos feris, oh sinos perdidos de antigas igrejas, que o vento soprou, que a areia cobriu, que vos enterrou? Vos que soluçastes, vos que emudecestes, vos que padecestes, fostes sepultados sem voz de outros sinos, sem toque, sem flor, morrestes na cruz assim como a morte que sofreu Jesus. Por que nos feris com vosso silencio? Mais prefiro ouvir vossa voz que é de dor, que é a mesma voz de Nosso Senhor.
Sinos que chorais como os tristes cegos, pela mão do guia que é o sacristão. Sino que ficais vogando no espaço, como almas penadas, pedindo perdão.
Sinos que lançais vossos tristes ais pela imensidão.
Oh como parece nossa sorte, irmão. Eu também soluço cá na minha torre, mas minha voz morre, nesta solidão.
Vossa voz ouvida, vossa voz querida, vossa voz lembrada pelos que vos amam, é tão desamada, é tão esquecida, voz muito sentida, voz muito sofrida, sem repercussão, para os que não ouvem a vossa oração.
Sinos que cantais, por que não ensinais vosso canto, irmãos? Sinos professores dessas andorinhas a quem ensinais vossa compaixão – por que não mandais alunas aladas a todos os homens dar vossa lição?
Quando eu for embora, sino meu irmão, quero badaladas em tom de oração. Quero cantochão bem triste e profundo, recordando ao mundo a minha solidão.
Sino solitário, lá no campanário, sino que lançais vossos tristes ais pela imensidão!
Oh como parece, nossa sorte, meu irmão.

De Viagem ao arco-íris, 1974

sábado, 5 de junho de 2010


Confissão

Quando eu morrer, Mãe,
esquece este filho,
tão triste, tão pobre,
que só pede uma planta no túmulo.
Quando eu morrer, Mãe,
tudo o que eu peço
é uma oração crepuscular.
Quando eu morrer, Mãe,
perdoa a falsa alegria,
o riso gratuito
a alegria postiça
que escondia uma tristeza tão grande
que você, Mãe, nunca suspeitou.
Quando eu morrer, Mãe,
perdoa os erros todos deste filho
que nunca deixou de ser criança.

De Relembranças
Milton Dias

Sobre a amizade
Amizade não se impõe, não se força, não se transfere, não se delibera, tem a sua linguagem própria, até nos silêncios, nos gestos mais simples; é mais sólida do que o amor, muitas vezes baseado apenas na afeição física, que os anos podem desgastar – enquanto a amizade se aprimora, se fortifica, melhora com o tempo. É que nem o vinho”
Cartas sem resposta – 1974.

No prefácio de Relembranças, livro póstumo de Milton Dias, Jorge Amado descreve: “A casa de Milton acolhia aos sábados os amigos numerosos para o deleite da prosa bem regada e alimentada: a mesa de guloseimas de dona Iracema e de sua gentil parentela não tinha igual e os sucos incomparáveis de frutas tropicais misturavam-se aos alcoóis: os nobres vinhos da adega do professor de letras francesas e os destilados escoceses trazidos pelos visitantes.”

A casa ficava cheia a partir das onze horas. Os jornais comentavam que ali aportavam as melhores cabeças de cidade. Intelectuais, profissionais liberais, jornalistas, artistas, gente que sabia ouvir e dizer, os agradáveis de se conviver. Lembram-se desses convescotes sabatinos Regis Jucá, Pedro Henrique Saraiva Leão, Ari Ramalho, Pedro Paulo Montenegro, Lúcio Alcântara, Olga Stela, Lúcio Brasileiro, Lustosa da Costa, Doriam Sampaio, Paulo Elpídio Menezes, além de outros como Antonio Girão Barroso, Moreira Campos e Fran Martins.

Antônio Girão Barroso, parceiro de tantas jornadas, lembrava: “Miltón, como às vezes o chamávamos... quantas lembranças dele, das suas estrepolias, das suas brincadeiras, aqui, ali e acolá, na casa dos amigos e nos bares da vida, tomando uma cervejinha bem gelada, com tira-gosto e um bom papo pela noite adentro...”

E Moreira Campos declarou: “Milton sempre tinha coisas e casos a contar-nos, com graça, com efeito, com resultados imprevisíveis e, no comum, reveladores da precária condição humana, tão rica de equívocos e desencontros.”

Artur Eduardo Benevides o definia com um ente poético capaz de tornar a própria tristeza menos rude:
“Mesmo versos não tendo, és grande poeta
E resguardas, com ritmo e beleza,
A palavra gentil, que nos completa.

E chegas até nós com tal leveza
Que choramos na nota mais secreta
Em que salvas a sombra da tristeza.”

Lustosa da Costa o desenha como um donatário de largas porções de ternura para os amigos.

Sábado, estação de viver – Juarez Leitão.

“Quando (Milton Dias) morreu, na manhã de 22 de março de 1983, deixou vago o seu lugar de melhor papo das rodas palestreiras desta terra de mares tão verdes, sábados líricos e tantas coisas que contar. Seus amigos o choraram em prosa e verso e alguns ainda apontam para o céu, em noites de nuvens escassas e muito uísque, de onde ele, feito estrela, ilumina a saudade de todos. Foi assim que Olga Stela o viu, quando produziu o poema

BALADA PARA O ENCANTADO

Na Ilha do Homem Só
No barco da Capitoa
Nas velas todas do mar
Lá está ele
Encantado

Nas cores do sol poente
Em cada boca da noite
Na brisa do alvorecer
Lá está ele
Encantado

Na várzea do Sete-Estrelo
No disco da lua cheia
No bojo da madrugada
Lá está ele
Encantado

Na Viagem do Arco-Íris
Na ciranda das Cunhãs
Nas ruas de Fortaleza
Lá está ele
Encantado

No compasso da viola
Nas noites de sereneta
Em cada gole de vinho
Lá está ele
Encantado

Nos pagos do Massapê
Na neblina que esvoaça
E abraça a Bica do Ipu
Lá está ele
Encantado

Nas ondas verdes do mar
De sua terra natal,
Nas águas do rio Sena
Lá está ele
Encantado

Nas baladas do sino
No toque da Ave-Maria
Na suavidade da tarde
Lá está ele
Encantado

Embaixo do pé de jambo
Onde a relva é sempre verde
Na morada mais singela
Lá está ele
Encantado

Na saudade que não passa
Em cada instante que passa
Na memória mais constante
Continua ele
Encantado

Continuará encantado
Como a estrela que morre
E seu brilho no firmamento
Permanece
Encantando”

Do livro Sábado, estação de viver, de Juarez Leitão.



sexta-feira, 4 de junho de 2010


O jardineiro e a rosa

O homem cuidava de comprar uma coroa de flores para mandar a um amigo morto, quando uma moça esbarrou o carro à porta do jardim, entrou feito ventania, o juízo amarrado no lenço de seda colorido, interrompeu sem pedir licença a compra alheia, atraiu o jardineiro aos canteiros para escolher com ela, às pressas, um buquê “bem bonito”.

E se mandaram os dois e deixaram o freguês aí, pensando no defunto e num milhão de provisões decorrentes do seu cotidiano, que deveriam ser tomadas a tempo de alcançar o enterro. Pois bem, quando já se despedia, quando já havia aberto a bolsa gorda, a moça deu com os olhos em cima dum botão de rosa vermelho, plantado sozinho num jarro de barro, em cima do parapeito, perto do local de trabalho do jardineiro.

– Ah, sim Seu José, eu levo também este botão – e foi fazendo sinal de arrancar o galho.
Seu José acudiu a tempo, cortou-lhe o gesto:
– Não, senhora, este aí não é pra venda.
– Ah, não, Seu José, hoje eu ponho este botão no vestido, não tem conversa. Eu vinha pensando numa rosa vermelha! Este botão vai ficar lindo em cima do bege, já pensou?
– Não, senhora, este daí, não!
(Aqui então veio uma famosa frase, filha de dinheiro):
– Peça quanto quiser...
– Não, Dona Menina, eu não vendo por dinheiro nenhum. Este daí é só pra eu olhar.
A moça ainda tentou uma ameaça:
– Pois eu não compro mais nada aqui, se o senhor não vender.
– Pra mim tanto faz. Eu também tenho direito ao meu capricho. Ainda estou achando que tenho é pouco tempo para olhar. Nem a mulher do Presidente levava este botão daqui. E encerrou a questão.

Seu José, afeito ao duro labor diário de amanhar o chão, acostumado a engravidar batatas de dálias e de angélica, semente de cecílias e de acácias no ventre da terra, parindo dezenas de rosas auxiliadas pelo trabalho de suas mãos grosseiras, vendendo-as depois tão caro, Seu José, de olhar duro, pouco riso e expressão rude, carregando um coração solteiro de homem maduro, tomou-se de súbita e grave paixão por aquele botão de rosa vermelho, encheu-se de ternura paterna, sentiu correr-lhe no peito estremecimentos de amante, quis protegê-lo como quem protege as crianças, as mulheres e os fracos, sentiu que a rosa em botão, sanguinea, solitária, só tinha por si alguns tristes espinhos contra a agressão do mundo.

Seu José sabe que as rosas têm suas horas de vida contadas, sabe que as rosas, assim como as pessoas, nunca são iguais, ainda que nasçam no mesmo pé, ainda que sejam gêmeas. Ele observou, sentiu, aprendeu. E naquela linguagem em que devem falar os jardinheiros e as rosas, no mesmo tom em que se reza, em que se tocam baladas de amor em serenata, em que se cantam canções de ninar, em que se dizem ternos poemas apaixonados, nessa linguagem de pureza que há de ser a mesma em que falam os pastores às estrelas e as estrelas aos poetas, nesse estranho diálogo que nós outros não podemos ouvir nem entender, o Jardineiro e a Rosa hão de ter feito graves, amargas censuras à incompreensão dos que lhes desconhecem os mistérios.

E a rosa-em-botão há de ter repetido ao Seu José, pai, enfermeiro, amigo, amante, irmão das flores, o que outra disse um dia ao Pequeno Princíoe: “Tu és eternamente responsável por tudo o que cativas”...

De A ilha do homem só.
Clube da segunda-feira

Ô amigos, alegrai-vos, rejubilai-vos amigos, vós todos que sofreis o impacto da segunda-feira, o cansaço físico e a ressaca moral das inconseqüências e fraquezas, vós que, frequentemente, no principio da semana, estais à beira do suicídio, incapazes de entrar nos trilhos, de raciocinar, de agir, de vender vossa mercadoria, redigir vossas razões, fazer vosso laudo médico, escrever o que for da vossa obriga.
Assim foi o falar de um amigo: quando o domingo último iniciava sua fuga, um certo senhor, que se encontrava entre camaradas, começou a sofrer por antecipação o desespero da segunda-feira, com seu bornal de arrependimento e de remorsos, determinando uma espécie de espontânea auto-acusação e conseqüente prestação de contas.
Surgiu então a idéia salvadora de fundar o Clube da 2ª Feira.
Surgiu a idéia justamente quando um deles contava seu calendário semanal, confessava que na segunda-feira lhe ataca uma terrível vontade de morrer. Na terça-feira o infeliz sofre uma crise mística, com vontade de entrar num convento, numa forma de recurso escapista, como quem procura refugiar-se num lugar tranqüilo, à espera da morte. Na quarta, vem o demônio da vontade de casar. Na quinta, o pobre deseja viajar, passa o dia sonhando com outras terras, somando lembranças estranhas, repetindo memórias de passos internacionais e andanças várias. Sexta-feira, diz ele que é dia neutro, não lhe vem desejo de morrer, nem de entrar no convento, nem de casar, nem de viajar. É o mais humano, o mais equilibrado, o mais generoso dos dias. E no sábado, como é de prever, sopra-lhe no peito uma aura de juventude no corpo e na alma de toda a humanidade, por uma sábia imposição da vida. Depois vem o domingo, com suas festas e alegrias, para na segunda-feira voltar àquela vontade de morrer.
Pois o Clube se propõe a uma piedosa ajuda, uma sorte de operação-salvamento. Chega o freguês na segunda-feira e já encontra outros náufragos com o rosto igualmente amassado, o riso perdido, o olhar buscando apoio, ânimo, perdão. Desgraça de muito consolo é: então vai a criatura de Deus se acomodando, feito quem se acomoda ao balanço do bonde e quando menos se espera, estarão todos festivos, cordiais, fraternos, como num sábado artificial.
E provavelmente à beira dum copo de uísque recuperador e perdonte, os que traziam o coração enfermo, a alma triste, o corpo cansado, o olhar morto, o riso apagado, e a medonha vontade de morrer, se encontrarão de repente reconstituídos, farão as pazes com a humanidade, com o mundo, com a vida especialmente, numa ciranda de compreensão e de paz, como merecem, cá na terra, os homens de boa vontade.
Sei bem que haverá de um tudo – e se acaso tendes preconceitos raciais, barreiras de discriminação social, ficai curtindo a segunda-feira em casa, na solidão do vosso quarto ou no vosso escritório. Se, alem de não terdes cumprido o dever da missa dominical, tombastes noutros erros, clamai a Deus perdão do profundo abismo em que vos achais, preparei-vos, abastecei-vos de medo. Felizmente o Clube da 2ª Feira não abrirá as portas somente para os virtuosos, pois estes, a bem dizer, não precisam, virão apenas animados pelo desejo de colaboração. Haverá muitos pecadores, muitas pecadoras haverá e alguns virtuosos. Algumas pessoas que não se consideram nem pecadoras nem virtuosas já pediram entrada. É possível que haja santos, porque “os santos descem ao inferno” informa Monsieur Cesbron.
Se o freguês quiser chorar, como era de bom tom no famoso Muro das lamentações, pode abrir a boca, feito versão atual de Jeremias – haverá um muro apropriado, chorai, chorai: ninguém vos interpretará mal o pranto copioso, talvez alguns até façam côro. Se quiserdes cantar, cantai, ó alegres almas da segunda-feira, cantai bendito ou valsa velha, samba ou bossa nova, cantai. Se quiserdes esfregar a cara no chão, como os maometanos, ficai à vontade, é muito salutar juntar-se um momento ao pó em que um dia se há de tornar.
Haverá uma provisão de remédio para o fígado, musica muito incomodativa, um clima psicoterápico muito propicio. Falar nisto, se quiserdes vos entregar à morte provisória, dormi – haverá meio de vos proporcionar bons sonhos – é o recurso da famosa sonoterapia. E se quiserdes orar, num sincero pedido de perdão pelos vossos pecados e pelos pecados alheios cometidos no sábado e no domingo, orai, Deus acode. Para vós, que amais a oração, haverá livros próprios, salmos e indicação especial para promover as pazes de cada cristão com seu santo particular. Livros de poesias, livros que ensinam otimismo e alegria de viver, livros que consolam, livros que animam, haverá um contador de estórias especialmente contratado para quem aprecia este gênero de entretenimento. E como se trata de fabricar um sábado no principio da semana, haverá um inevitável violão.
Haverá muito mais, só vendo. Alegrai-vos. E preparai-vos para uma nova segunda-feira nada sombria, muito feliz, dentro do melhor espírito comunitário.
De A ilha do homem só.


As três soluções

Os amigos, que eram três, cansados da inútil busca, aportaram num bar vazio, silencioso, e de repente, derramaram a sua confissão de solitários perdidos nos caminhos da noite e concluíram, quase sem preâmbulo, que nem a presença mútua, nem a solidariedade, nem a bebida, nem as mulheres, nem os amigos, nem as sombras, nem as músicas numerosas que colheram por onde passaram, nem os versos que invocaram, nem as alegres lembranças povoavam a sua solidão.
E consumiram o tema com maior avidez do que a bebida e gastaram a experiência longamente acumulada, usaram maduras reflexões que tinham, no principio, um travo de queixa discreta, revelando traiçoeiramente por algumas poucas idéias soltas sem censura.
Depois, por volta da madrugada, quando já tinham gasto muitas palavras (claro que citaram Shakespeare: “words, words, words”), a luz se fez por acaso e descobriram que todos sofriam de desespero congênito para a convivência humana. E porque assim entenderam o destino, o mais lúcido, o óbvio era aceitar, cumprir e fecundar a solidão. Sem violentar a natureza, seguindo o exemplo de todos os que tinham sabido arrancar do seu estado de sós, as forças para enriquecer o patrimônio cultural da humanidade.
E não entenderam a condenação bíblica que está no Eclesiastes “Vae Soli!” e buscaram no mundo confirmação para a tese da validade, até da necessidade da solidão, responsável pela grande contribuição que tem dado ao mundo, que vem dos que, sozinhos, no seu laboratório, se debruçam sobre provetas e descobrem remédios para os males; dos que, sozinhos no seu gabinete, queimam os olhos nos livros e nos seus escritos, os que exercitam as mãos e a mente e a alma no mistério da criação.
Sozinhos estiveram frequentemente Buda e Cristo, sozinho andou São João Batista pelo deserto, sozinhos estiveram Santo Antonio e São Francisco, para citar só estes; sozinhos estiveram Tereza d’Avila e Tereza do Menino Jesus e muitas outras monjas que tiraram da solidão a santidade.
E voltaram ao tema inicial com a insistência e a repetição do Bolero de Ravel e encontraram que a solidão não decorre propriamente da ausência da companhia – e para ilustrar, lembraram a idéia do escritor italiano que define o chato como aquele que nos rouba a solidão sem nos fazer companhia. O que, traduzindo para a nossa língua dá que mais vale só do que mal acompanhado.
Vai ver é mesmo. Entro aqui com a minha opinião muitas vezes verbalmente defendida, discernindo três marcas de solidão.
A primeira, a mais terrível é a que se cumpre a dois, é a melancolia de viver juntos sem diálogo, morar juntos, comer juntos, dormir juntos, acordar juntos, e não ter mais amor, nem amizade, nem palavras – ou, como diz a cantiga brasileira: não ter mais vontade de brigar! – e continua convivendo por conveniência, por falta de iniciativa, por preguiça, por prudência, por circunstancia, por covardia, vivendo literalmente os versos do nosso poeta: “A vida inteira que podia ter sido e não foi”.
A outra, a segunda, a que já todo mundo há de ter experimentado pelo menos uma vez na vida – é aquela de se encontrar só, no meio da multidão, ilhado de gente por todos os lados e continuar só, não ter com quem dividir a alegria nem a tristeza, não ter com quem comentar as coisas mais simples, o tempo, a natureza, o filme ou a peça de teatro que se acabou de ver, o quadro que se admirou, o livro que se leu, a dor que se sofre, a saudade que se cumpre, a esperança que se acalenta, não ter a quem dizer que se está só, não ter a quem pedir esmolas dum olhar, dum riso, duma palavra.
A outra, a terceira, é a fecundante, aquela que se deve exercer com sabedoria, a que ensina a refletir, a usar a cabeça e as emoções em favor próprio ou alheio, a doce solidão intocada, a solidão propriamente dita, física, moral, espiritual, professora dos sábios e dos santos, a companheira dos filósofos, inspiradora dos poetas, a mestra dos profetas, a mãe dos gênios, a respeitável Senhora Solidão. Que pode ser má quando é imposta e repudiada e pode trazer grandeza quando é solicitada, cultivada, desejada, amada. A bendita solidão dos que sabem ser sós.

De Relembranças