
Viagem à Praça do Ferreira
Antigamente era compulsório – pelo menos uma vez por dia se passava na Praça do Ferreira (nem faz muito tempo este “antigamente”) e nas esquinas ou nos cafés encontrava-se a vidinha provinciana, apanhavam-se os transportes. Pelo menos uma vez por dia, eu disse, mas frequentemente acontecia de se comparecer ate três vezes – ao final dos dois expedientes e à noite, para o cinema, o passeio, ou simplesmente para a descompromissada parolagem, naqueles bancos anatômicos, de saudosa memória, contando com o conforto da brisa, que passava branda e ligeira.
Antigamente era compulsório – pelo menos uma vez por dia se passava na Praça do Ferreira (nem faz muito tempo este “antigamente”) e nas esquinas ou nos cafés encontrava-se a vidinha provinciana, apanhavam-se os transportes. Pelo menos uma vez por dia, eu disse, mas frequentemente acontecia de se comparecer ate três vezes – ao final dos dois expedientes e à noite, para o cinema, o passeio, ou simplesmente para a descompromissada parolagem, naqueles bancos anatômicos, de saudosa memória, contando com o conforto da brisa, que passava branda e ligeira.
E lá estavam infalivelmente os jovens e velhos matriculados nas rodas diversas por onde corriam futebol, literatura, política, vida alheia, até o momento em que o relógio da coluna anunciava a partida do ultimo bonde. Bem me lembra o titulo da matéria com certa vez ganhei um concurso de reportagem – Bondezinho sonolento em cima dos trilhos – um apanhado de conversas que incluía esperanças, ambições, amor, mulheres, farras e mágoas. Algumas vezes pegava-se um deles dirigido por certo motorneiro bastante conhecido pelo pitoresco apelido de “Mamãe-dorme-só”.
Passou, passou. Hoje, de maneira geral, nem se vai mais à Praça, que lamentavelmente ficou impraticável, com o estacionamento impossível e de onde desapareceram as figuras amigas. A mim, só me ocorre ir ali por noite, para pegar os jornais do Rio, ou em missão de comprar medicamento, quando posso esbarrar o carro à porta da farmácia. E o momento em que a praça mais parece cemitério, triste, vazia, silenciosa, como aqueles grandes túmulos de cimento coberto de vegetação – só faltam cipreste para completar o quadro.
Mas sábado passado, pela manhã, me deu na cabeça de fazer uma ronda nas livrarias do centro – e me mandei a pé, tendo como ponto de partida esta ex-tranquila Rua Coronel Ferraz, que apesar de ainda amada, aos poucos nos via despejando, com a ameaça da construção de edifícios, o comercio deitando tentáculos, os carros promovendo o barulho constante.
Saí por volta das dez, tinha chovido às primeiras horas, mas já um sol vigoroso pontificava festivo. Ganhei o Beco dos Pocinhos (agora colocaram lá uma placa “Rua do Pocinho” – porque não restauraram exatamente o nome antigo?) fiquei considerando quantas vezes terei feitos este mesmo percurso ida e volta, nos quarenta e cinco anos em que demoro aqui na Praça da Escola Normal, com alguns intervalos de ausência.
Depois da Governador Sampaio, na calçada estreita, incuravelmente esburacada, procurei o coqueiro que vivia no quintal da Lindoca Borges – e me dei conta de que não existe mais. Quem sabe, teve o mesmo fado daquele da Casinha Pequenina “que, coitado, de saudade já morreu”. As donas da casa também já se foram há muito.
Justamente aí, onde parara um instante, encontrei o primeiro conhecido, um contemporâneo de Faculdade, que logo foi cumprindo sua vocação autobiográfica, contou-me as graças da aposentadoria, o automóvel, permanente lazer, as glórias de avô, o exercício de jardinagem com que entretém seu ânimo agrícola, a pequena horta no fundo do quintal, um arremedo de pomar a que não faltam o limoeiro, a goiabeira, a ateira, a bananeira. E depois da demorada entrevista, ao partir com seu sorriso de felicidade, me deixou refletindo que ali, sim, estava um homem plenamente realizado. Tão satisfeito com tudo, que nem pensa em viajar – Deus o livre. Ah, sim, apresentou-me triunfante o neto, um colosso de garoto de quatro anos, candidato a gênio.
Mais adiante, ao final do segundo quarteirão, quando já beirava a Sena Madureira, com quem me deparo! Uma velha amiga, que ao tempo da verde juventude, apesar de virtuosa, deu muito o que falar – e eu não via há tanto tempo. Caiu-me nos braços e terna e longamente nos rejubilamos pelo inesperado reencontro. Devolvemo-nos a patrazmente, despertamos lembranças comuns, festinha, amigos, namoricos e eu constatei com alegria que a distinta saiu do casamento em perfeito estado de conservação, muito mais bem tratada do que entes e durante a vigência do marido. Que aqui pra nós, eu sabia, não era flor que se admitisse em matrimônio, mal amante do lar, boêmio de terceira categoria, freguês de bares, hospede de cabarés. Finou-se, mas lhe deixou a casa própria, dois terrenos que já foram transformados em viagens, o bom montepio e a liberdade. Anda curtindo um verdadeiro esbanjamento de felicidade outonal.
Atravessei a rua, prossegui distraído. De dentro do primeiro bar, de repente soltou um bêbedo que me agrediu efusivo, gordo, velho, um vago conhecido de quem nem me acudia o nome veio intempestivo e fraterno, congraçante, alvissareiro, interceptou-me o passo com rapidez felina, jurou repetidos protestos de apreço na sua loquacidade incômoda. Não me soltava, contou que acabara de fazer uma aposta no Brasil (já por conta do campeonato mundial) e qualificou-se solenemente como aposentado do INPS. Quanto eu mais eu me despedia mais ele me agarrava com uma chave de braço. Confessou-se meu leitor e o confirmou recordando algumas crônicas. Ate que me ocorreu uma mentira salvadora, invoquei uma consulta médica marcada, estava em cima da hora.
Daí por diante, na minha frente, caminhavam duas velhotas em compasso lento, o andar comprometido em cima de sapatos cambaios, os vestidos surrados, as bolsas prudentemente presas ás axilas. Conversavam animadamente, apurei o ouvido, pensei que se queixavam da carestia. Mas não, estavam ambas se gabando dos sucessos das famílias respectivas, cada uma ilustrando seu tema com exemplos, nomes, títulos, vitórias e cursos. A mais velha citou uma filha portadora de diploma de datilografia, outra namorando um rapaz de fora, a terceira, se não era subgerente da loja em que trabalha, era mesmo que ser – tudo ela sabia.
Quando atingi a Praça já eram onze horas, fui abordado por vendedor de bilhete de loteria, por mendigos, um vendedor de pente ( que teve a audácia de me oferecer ), uma mulher com subscrição para internar o filho enfermo e por dois chatos que descartei de pronto, usando a mesma desculpa do médico.
E no ponto em que já alcançava a livraria, um moço aprendiz de poeta me tomou bom tempo, recitando, empolgado, versos próprios e comunicando seu propósito de se inaugurar em livro. Quando menos esperei, já era meio-dia, cambei de volta num táxi, com receio de que o retorno consumisse o mesmo tempo.
Decididamente foi uma manhã de encontro com gente feliz. Deixa estar que no próximo sábado eu vou mais cedo.
muito interessante o texto :)
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