
O JULGAMENTO
Ontem aportei numa barbearia de subúrbio, destas em que os barbeiros ainda julgam da sua obrigação entreter o freguês com a conversa, enquanto o atendem, ou durante a espera. Foi exatamente naquele dia em que um homem assassinara a mulher com 32 facadas. Eu tinha visto a manchete a distância, mas não lera o corpo da noticia, por isto não conhecia nem conheço detalhes, sei apenas que foi por ciúme, ou, se quiserem, por amor. E o assunto que começara justamente na minha cadeira, dentro de pouco tempo se alastrou, apaixonou o salão todo, e barbeiro e fregueses serviram-se fartamente do tema.
O que começou a conversa reprovara o crime com expressões banais, repetindo frases feitas para a ocasião e descambou rapidamente para o seu caso pessoal:
- Ora que doidice! Estragar a vida por causa duma mulher (não lamentava o óbito, mas a cadeia). – Pois eu estou doido que a minha lá em casa me deixe. Faz até um favor.
Um outro, de meia idade, foi categoricamente contra o assassinato e também derrapou para o plano particular, lembrou a sorte que tivera no casamento, gabou-se da família bem constituída, os filhos trabalhando, as filhas casadas, informou que dentro de trinta anos nunca reinara ciúme no seu lar. E de certo modo se explicou com bastante humildade: - Sim que a minha mulher não é bonita. Quando resolvi escolher moça, foi logo no que eu pensei, foi não carregar perigo para dentro de casa.
Um jovem moreno reprovou as 33 facadas, mas aí foi uma reprovação mais de ordem técnica, criticou a má pontaria criminosa. E um outro, que estava lá simplesmente a perder tempo, concordou em gênero, número e grau com o assassinato, achou tudo muito certo, ate julgou que 32 facadas ainda eram poucas. Isto se, na verdade, o ciúme tivesse fundamento, se a vitima realmente estava traindo o marido. Que mulher traidora não merece outro destino, concluiu incisivo.
Um barbeiro moço, que estava sem freguês, foi o ultimo a falar. Este aprovou igualmente o crime, também no caso de se tratar duma adultera, mas reconheceu que houve inflação de punhaladas, não precisava tantas. Assim já era ferocidade.
Dentro de pouco tempo eu tive a impressão de estar no mais agitado tribunal do júri, uns na defesa, outros no ataque, a questão do amor, do ódio e do ciúme, foi abordado copiosamente- e ainda não tinham chegado a um acordo, quando a manicure, a única no salão, tomou a palavra.
Ah, vocês precisavam ver a valentia daquela mulher pequena, magra, em cima do solto alto, os brincos balançando, acompanhando o inquieto movimento da cabeça, os olhos de víbora querendo saltar das orbitas, as mãos pequenas, expressivas, agitadas em gestos largos, a voz empostada no volume mais alto, tomando a defesa das mulheres, feito oradora em comício.
Arrolou todas as conhecidas razões do seu sexo, a famosa igualdade de direitos nunca reconhecida, e excessiva liberdade dos homens, a prepotência, o complexo de machismo. Claro que usou vocabulário mais pessoal, mas o sentido esta sendo reproduzido com fidelidade. Falou no grande numero de maridos que vivem mais na rua do quem em casa, os que traem a esposa abertamente, ainda se dão ao luxo de ter ciúme e impor restrições, fazer exigências de toda ordem- E, sabem duma coisa?- interrogou conclusiva. - Homem ruim foi feito pra ser traído.
Então aquele senhor mais velho, que representava a experiência, o poder moderador, o que de tão prudente casara com mulher feia, enviesou um olhar de repreensão e no seu lento falar, economizando gestos, criticou o exagero das opiniões da moça e os enganos em que incorrera, principalmente quando falara em marido ruim. – Porque aí, disse ele, é que está o erro maior. Os maridos mais traídos são os bons, pode prestar atenção. E homem bom não merece nem traição nem punição.
A discussão se generalizou, passara à casuística. E o mais curioso é que os exemplos foram tomados entre gente conhecida do bairro, citaram nomes, endereços, davam detalhes, coloriam os casos com a maior tranqüilidade.
Quando estavam neste ponto, que já lembravam mais uma cena de teatro do que salão de barbearia surgiu uma figura imprevista, certamente o tipo popular do bairro, um homem de prováveis sessenta anos, as mãos cheias de samambaias, o olhar aceso por bicadas de cana que o hálito denunciava. Chegou dando viva à chuva (chovia, sim) louvou a Deus nas alturas e pediu paz, na terra, para os homens de boa vontade e ofereceu plantas. Que ali estavam só amostras, ele podia buscar mais para quem se interessasse. De repente recomeçaram a discussão, o homem das samambaias percebeu o tema reimoso, foi saindo reprovador, com estas palavras:- Eras! Aqui só se fala em desgraça. E se despediu sem uma palavra.
Foi o tempo que terminaram a minha barba, eu paguei e saí pensando na rapidez, na diversidade, na fragilidade do julgamento humano.
De A capitoa
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