SEMPRE MILTON DIAS

José Milton de Vasconcelos Dias (*29-04 1919 - Ipu - CE; +22-03 1983 - Fortaleza - CE ).

Após iniciar os estudos na cidade de sua infância, Massapê, vem para o Colégio Castelo Branco em regime de internato.

A experiência da infância em meio à paisagem sertaneja, seus mitos e ritos, lendas e cantorias, foi fundamental para a formação de sua sensibilidade criadora, uma vez que despertaria, no futuro cronista, a inclinação para o lirismo, o poético.

No Colégio Marista Cearense, onde realizou os estudos secundários, descobriu, em definitivo, a vocação da escritura. Sendo fundador dos jornais ´O Ideal´; e ´Alvorada´.

Em Paris, cursou os Estudos Superiores Modernos de Língua Francesa e Literatura Francesa.

O Governo francês o condecorou com a Ordem das Palmas Acadêmicas.

Foi professor de Língua e Literatura Francesa no Curso de Letras da UFC.

Bacharel em direito (1943), Letras (1966), professor secundário no CE e SP, tradutor, diplomado em letras neolatinas. Cursou Faculdade de filosofia. Técnico educação UFCE, secretário UFCE, contista, cronista, ensaísta, orador, jornalista, fundador e membro do Grupo Clã-movimento renovador das letras cearenses. Membro da Academia Cearense de Letras- cadeira nº 4- e Associação Cearense da Imprensa.


quinta-feira, 13 de maio de 2010

QUE MUNDO É ESTE?

Que mundo é este em que vivemos, que rapidamente se desvairou e traz o povo perplexo e desarvorado em cada amanhecer, em cada anoitecer, com as noticias de desgraças por toda parte cruzando o espaço, transmitidas inexoravelmente pelo radio, pela televisão, repetidas nos jornais com abundantes detalhes? Parece que as forças da natureza se uniram aos desmandos dos homens: além de furacão e tremor de terra, os assaltos, os seqüestros se multiplicam produzindo uma constante de insegurança, para não dizer de pavor. Será que soltaram as bestas do Apocalipse, ou são apenas as bruxas no exercício rotineiro das suas funções?

Nesta linha de idéias que vez por outra fatalmente nos ferem e conduzem à indesejada depressão, chega-se a ter nostalgia do mais antigo outrora, daquele tempo que não se conheceu pessoalmente, de que apenas se teve noticia, a doce vida do princípio do século, dourada com o deslumbramento que as descobertas iam acordando, despertando a curiosidade, exatamente porque ultrapassavam os limites das possibilidades então conhecidas, provocando na imaginação do povo cogitações ousadas e fantasias atrevidas, objetos de longos comentários nas tranqüilas conversas de cadeiras na calçada.

O escritor José Cândido de Carvalho disse uma vez que o mundo só foi bom até o advento do automóvel. Sei lá, realmente era tudo muito misterioso e distante, a vida era mansa, tinha ritmo mais lento, mais humano, as gerações se sucediam cumprindo os mesmos princípios, sem conflitos: os filhos, os netos e bisnetos repetiam as atitudes dos seus antepassados sem protestos e sem recalques.

Muito depois inventaram os complexos, complicaram a educação, aposentaram a palmatória, deram às crianças, sobretudo os adolescentes, liberdade total, a qual liberdade muito deles usaram desastrosamente, com a cumplicidade do volante e o tempero das drogas. O diálogo se impôs como uma necessidade, mas, ao mesmo tempo, tornou-se instrumento de rebeldia- e por trás desta palavra mágica de inegável importância no nosso contexto, já muito falta de respeito à autoridade paterna tem ocorrido, já muito drama foi vivido e sofrido.

Longe de mim a idéia de deitar carrancismo e rancor contra as novas gerações, que têm seus encantos e virtudes: reconheço que os bons de hoje são melhores do que os de ontem, mais sinceros, mais abertos, mais francos, despojados das passadas hipocrisias. Os realmente bons são ótimos: bem-aventurados, pois, os pais que os têm.

Apesar de todo um complexo sistema educacional, apoiado em teorias e experiências que cada dia se renovam, difícil é saber que rumo tomar para a orientação de um filho, num mundo tão conturbado, tão marcado por maldades e percalços, tão pertubadoramente alucinado. Uma senhora se queixava outro dia que não sabia como fazer: se prender os filhos vem o demônio dos complexos; se soltar vem o diabo do perigo a que se expõem os meninos verdes e meninas em flor que se mandam sozinhos para as alegrias da noite e retornam para casa ao romper da aurora.

Quem sou eu, para ensinar como fazer? Cada vez respeito mais e admiro mais o trabalho dos pais e mestres que sabem conduzir seus filhos e alunos com a devida habilidade, preservando-os sabiamente nesta difícil, agitada maré reinante.

Não faz muito tempo um amigo chorou no meu ombro, confessando seu total fracasso na direção da família. Foi praticamente apeado do poder domestico: assim que os filhos completarem dezessete, dezoito anos, deram o grito de independência e saíram por aí a provocar desgosto em cada fim de semana, de tal forma que a partir de sexta-feira começa a correr-lhe um frio na alma, com medo do que possa acontecer de terrível a essas aves implumes soltas nos caminhos da madrugada.

Não se conforma com a perda do controle, recorda os padrões em que se criou, a força que fez para se afirmar na vida, vindo duma camada social pobre, a vitoria que alcançou com seu suor, os empregos humildes que exerceu, as dificuldades que enfrentou na cidade que lhe era estranha, as economias que fez, a pecúnia que amealhou, a situação que conquistou, elevando-se mesmo à categoria dos ricos. Diz que os meninos se aborreceram e debicam quando ele evoca todo esse passado dolorido, a história do homem que se levantou por conta própria, que se fez só com o seu trabalho e a ajuda de Deus, que deveria ser contada com alegria, como modelo e lição.

Pior é que o cupim está em todas as camadas. Semana passada andou aqui a Tereza Paixão, uma mulata velhota, pequena, humilde, lavadeira de profissão, que tem as mãos engelhadas do seu oficio e os dedos enrugados até as pontas. Cedo enviuvou e criou a duras penas os filhos tacitamente confiados ao seu único encargo. Coitada da Tereza Paixão, fazia tempo que eu não a via, parece agora uma pintinha molhada, indefesa, está um caquinho, minguado, sumindo, se devorando no sofrimento. Aqueles filhos que lhe custaram tanto cuidado, trabalho, sacrifício e afeição, que ela tratou como pôde, alimentou, embalou em longas noites de vigília nas doenças, deu escola e ensinamento, estão lhe atormentando a velhice. Não vê, a mais velha se tresmalhou mal se pôs moça, instalou-se oficialmente como mulher de má-vida. E o que mais lhe dói é que a filha nem lhe aparece para pedir a bênção. - Que bênção eu dou (assim foi o seu falar), mas não posso impedir o choro quando me lembro do seu destino. O outro, que lhe vinha encostado, sentou o pé no mundo, nunca deu noticia. E o terceiro já é um virtuoso consumidor de cachaça, vive desempregado, curtindo seu bom cascarobil. Agora já lhe assombra o mau exemplo para os menores, para as duas que estão ficando mocinhas. Ah mundão cheio de surpresas!

Deus me livre de deitar nuvens na alma do leitor, por conta destes poucos exemplos isolados. No plano da conversa puxa conversa, quando se comenta os desvarios da humanidade, baixa de quando em quando um rápido momento depressivo, que nos leva a indagar que mundo é este em que vivemos. Mas não há razão para desesperos: basta atentar para o número de jovens que cada ano concluem seus curso universitário, basta lembrar os milhares que se inscrevem na guerra do vestibular, os que estão participando de movimentos sadios, construtivos. Basta ver aqueles moços que espontaneamente se oferecem nos asilos de idosos para tomar um velho sob sua guarda, um ancião para seu afilhado.

No mais, a vida continua mantendo sua reserva de beleza e uma palavra de compreensão, de apoio, um gesto de bondade, valem muito mais do que toda a maldade acumulada.

De repente nos refazemos da depressão, reagimos contra os maus pensamentos, redescobrimos que não vale a pena fazer coro com os eternos inconformados, abrimos os olhos para os que estão cuidando de preservar os valores morais e espirituais do homem, volvemos à confiança na humanidade, recorremos à lição de que “a única atitude possível diante do absurdo da vida é uma resignação com humor”. Nem tudo está perdido e amanha é outro dia, com a graça de Deus.
De A capitoa

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